Shambhala | 2024

Shambhala | 2024

Uma experiência de transe cinematográfico. Um cinema que atrai fluidamente para dentro dele, que chama a atenção por um sorriso que subitamente desaparece, que te convida a meditar em pontos-chave, certeiros, direcionando a elevação do pensamento. Shambhala não depende de explicações, mas fornece muitas sensações. A jornada de uma mulher que se casa com três homens, mas que vai percorrê-la em busca da autorreflexão e autoconhecimento.

Num vilarejo nos altos do Himalaia, Pema (Thinley Lhamo) é uma jovem espirituosa que se casa com Tashi e seus dois irmãos mais novos. Os quatro vivem em harmonia e respeito, até que Tashi viaja numa caravana de negociadores para a comunidade vizinha de Lhasa. Em sua ausência, Pema se descobre grávida e passa a ser questionada pela comunidade sobre a legitimidade da criança que espera.

Shambhala, dirigido por Min Bahadur Bham, é cinema meditativo e puro. Através da jornada de Pema, que não hesita para provar sua verdade, ele nos transporta para esse lugar tão alto, congelante, mas confortado pela gentileza de Pema. Com uma câmera cuidadosa que praticamente flutua naquelas montanhas, quase que passivamente, o diretor proporciona uma experiência de inserção espiritual numa cultura que não conhecemos, onde mulheres podem viver em poligamia, mas ao mesmo tempo são alvo fácil de questionamentos morais bastante machistas.

Bham, por primeiro, nos apresenta a dinâmica daquela comunidade e sua lógica relacional pelo casamento de Pema, que é aconselhada por sua mãe a não servir a seus maridos, mas ser servida por eles. Entre eles, há de existir um preferido, o mais amado, o companheiro. Sem qualquer pressa, depois de contemplar a felicidade da noiva, conheceremos os noivos: Tashi, Karma e Darwa, sendo o último um menino com pouco mais de 10 anos. Não há, aqui, julgamentos. Pema não guarda com o menino qualquer relação que não seja maternal. Torna-se, de fato e simbolicamente, mãe de seu marido, que precisa frequentar a escola, se alimentar e dormir na hora correta.  

Flui-se do casamento para a rotina plenamente harmônica dessa família. Pema, que esbanja o sorriso gentil mesmo nas situações mais conflituosas, assiste a relação carinhosa dos irmãos, e se afeiçoa à Tashi. É com muita beleza que o diretor passeia levemente naquela casa, trabalhando uma profundidade de campo discreta para nos inserir naquela dinâmica, iluminando-a sob uma luz calorosa e confortável, deslizando por todo ritual de se fazer e se servir um chá, e posicionando sua câmera por entre a panela no fogão, se detém na feição alegre de todos. A relação de proximidade entre Pema e Tashi vai sendo construída com muita afetuosidade. A casa é viva, não há ciúmes entre eles, e a paz é sentida. 

Pema tem o direito de viver em poligamia naquele lugar. Mas um de seus maridos é uma criança. Karma é um monge, e após casar-se com ela logo vai para o Monastério, e Tashi viaja para ficar meses fora. Enquanto seus maridos adultos se ausentam, ela assume a maternidade de Darwa, precisando lidar com as complicações que ele causa na escola, e se aproximando de seu professor por isso. Vê-se que o diretor distancia aquela cultura da ocidental, que não permite, por exemplo, a poligamia e que vê com estranheza a relação de afeto entre homens, para depois aproximá-la quando Pema surge grávida. Quando se ofende a honra daqueles homens, a misoginia e o machismo retornam para o julgamento da mulher.

Na sutileza, notamos a desarmonia. A protagonista, que até então bordava alegre um suéter para seu amado Tashi, guarda uma expressão tensa e está perceptivelmente desconcentrada. A gravidez de Pema é descoberta após uma visita do professor de Darwa, e Bham não se interessa em mostrar muita coisa sobre sua ocorrência. Se interessa, sim, nas acusações que recaem sobre a personagem, cuja comunidade começa a questionar quem é, de fato, o pai da criança que ela espera. 

É nesse ponto que a jornada de Pema se inicia, tendo como mote inicial a procura por Tashi, que avisado dos rumores de desonra de sua esposa, não retorna ao lar. Seu objetivo é contar para o marido a verdade. Qual verdade é essa, não cabe ao espectador julgar. Com seu bebê no ventre, poucos pertences, seu cavalo e seu marido Karma, relutante em deixar o monastério, ela adentra ainda mais o Himalaia.

O caminho para busca do marido e prova da verdade passa pelo da construção de uma nova relação com o marido Karma, e se transforma para dizer respeito somente à Pema como mulher. Nenhuma circunstância a impede de persistir: nem seus maridos, nem o frio, nem sua mãe, nem a grande mochila que ela carrega em suas costas, nem a gravidez. Os acontecimentos e reflexões do caminho vão lhe mostrando o seu próprio. A protagonista faz alguns encontros significativos como condutores. 

O tom transcendental se mantém pelos espaços e profunda conexão da personagem com eles. Imersos naquela natureza inóspita junto com Pema, somos atraídos por um fio permanente que o diretor costura. A reflexão sobre o conceito de Shambhala, que é o da reencarnação, é induzida pelo sino de meditação quando Pham quer nos levar para outro lugar além daquele do filme. Ele usa de situações de transe e do estado de sonho de Pema para comentar as conexões espirituais que ela faz e que vão a levando para o autoconhecimento. 

“Me ajoelhei por aquela garota, para que ela possa ter um melhor renascimento”. Ao cruzar o caminho de uma garota que também precisa provar sua verdade, a fala de Pema reflete o espaço das mulheres em sociedade, como se somente uma nova vida pudesse fazer as coisas um pouco melhores. Pema vai passar pelo mesmo teste, para elevar-se espiritualmente e encontrar seu lugar, longe de seus tão simbólicos “karmas”. O reencontro com Tashi acontece, e tal como o olhar de Lily Gladstone em Assassinos da Lua das Flores, Pema somente observa e segue seu caminho. A moça absolutamente gentil deixa de existir, transcendendo para uma mulher que encontra seu Shambhala na mesma terra Himalaia que ela nasceu.

Direção: Min Bahadur Bham
Com: Thinley Lhamo, Sonam Topden, Tenzin Dalha, Karma Wangyal Gurung, Karma Shakya
País: Nepal, França, Noruega, Hong Kong, China, Turquia, Taiwan, Estados Unidos, Catar
Assistido no dia 21/02, no Cinemaxx
Mostra: Competitiva

Nota:

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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