Who Do I Belong To | 2024

Who Do I Belong To | 2024

A maternidade abre fendas que são irrecuperáveis, uma linha que atravessa e define períodos muito distintos da vida. Não é incomum que a felicidade materna e da mãe como mulher torne-se uma só coisa, sendo projetada nas pessoas das filhas, filhos e filhes, terceiras pessoas dotadas de vida própria, personalidades próprias, cujas decisões, a partir de certo ponto, estão fora do controle. 

Aicha é uma mulher mística que tem sonhos proféticos e o dom de ler borras de café, e mãe de três filhos, residindo com eles e seu marido no interior da Tunísia. Quando dois de seus filhos desaparecem, ela e sua família entram num estado de profunda tristeza, até que, meses depois, um deles retorna com uma esposa grávida e misteriosa, que nada fala e deixa somente os olhos à mostra pelo jihab que usa. Ávida por proteger seus filhos, Aicha os admite na família, sem perceber a estranheza dos acontecimentos ao redor e o medo que começa a consumir a comunidade.

Esse desaparecimento logo é justificado. Descobrimos que eles são cooptados pela ISIS (Estado Islâmico) quando o filho mais novo, que remanesce, entende que o motivo da ausência dos irmãos é uma escolha que parece definir pessoas como boas e más. “Eles são terroristas agora? Mas eu ainda os amo, isso é ok?”. Toda pessoa tem uma mãe e tudo que ela agrega. Deixamos de amar pessoas por suas decisões ruins? Deixamos de amá-las quando elas se tornam pessoas que, nem nos nossos piores pensamentos, imaginávamos ser?

Meryam Joobeur nos leva para um lado sombrio da maternidade em sofrimento, quando a proteção e o amor causam uma oportuna cegueira. A diretora mostra um interesse em olhares e expressões para discutir a inimaginável dor de amar pessoas que se mostram muito diferentes daquilo que projetamos. 

Dividindo o longa em capítulos, a diretora usa da intimidade e da proximidade para reproduzir esse retrato de dor materna. Aquilo que ela não aproxima pelo zoom, é quase que totalmente desfocado. Planos-detalhe da pele, de partes específicas do rosto, como os olhos e narizes, predominam grande parte das interações mostradas no longa. A autopunição do pai que acha que não foi duro o suficiente com seus filhos, a protagonista que tendo perdido dois filhos simultaneamente protege o terceiro com fervor. O ferimento profundo feito na mão de Aicha quando ela se acidenta cortando batatas e que nunca cicatriza vem carregado de muito significado, e a diretora se detém no pano sujo desse sangue que simboliza essa dor incurável.

Quando o filho Mehdi retorna com uma mulher, a atmosfera já entristecida daquele lugar dá espaço a um peso e uma tensão como se algo de ruim fosse acontecer a qualquer momento. Uma aura fantasmagórica começa a circundar também a esposa de Mehdi, uma mulher encoberta pela burca e tendo visível apenas grandes olhos azuis chorosos. A chegada do casal é oculta, claro, mas vem acompanhada de estranhos acontecimentos no vilarejo. Joobeur cria, a partir daí, um suspense que, infelizmente, vem muito acompanhado de estereótipos, usando de artifícios para confundir o espectador para visualizar aquela mulher como uma espécie de bruxa. 

Acompanhamos o desespero materno para proteger aquele filho que retornou,e isso inclui sua esposa, por mais que Aicha também a repudie. Grande parte da força de Who Do I Belong To vem dessa cegueira da protagonista, mas a diretora se deixa levar pela linha do mistério que precisa ser solucionado, o que enfraquece o que vinha com tanta promessa. Frutas apodrecidas, ovelhas mortas, pessoas desaparecidas, tudo parece ser encaixado para culpar aquela mulher presa em sua burca.

Meryam Joobeur acaba por tomar um caminho insistente demais em surpreender seus espectadores, que finda por perder a intimidade trazida a princípio. De qualquer forma, é prazeroso ver duas mulheres, uma africana e outra iraniana, vindas de países árabes, na Mostra Competitiva da Berlinale, a própria Meryam Joobeur juntamente com Maryam Moqadam, de My Favourite Cake, abrindo espaço para que mais histórias femininas sejam contadas.

Direção: Meryam Joobeur
Com: Salha Nasraoui, Mohamed Hassine Grayaa, Malek Mechergui, Adam Bessa, Dea Liane
País: Tunísia, França, Canadá
Assistido no dia 22/02, no Berlinale Palast
Mostra: Competitiva

Nota:

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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