As Noites Ainda Cheiram à Pólvora | 2024

As Noites Ainda Cheiram à Pólvora | 2024

Moçambique lutou por sua independência para alcançá-la somente em 1975. As mazelas e o caos causados pela colonização e domínio português no país não se dissolveria repentinamente com a independência: o legado deixado para o período pós-colonial é sangrento e assustador. Apenas dois anos após tornar-se uma nação autônoma, o país entrou em uma guerra civil que se estendeu de 1977 a 1992. Foram 15 anos de horror, medo e morte, um reflexo da perpetuação da violência deixada por Portugal.

As Noites Ainda Cheiram à Pólvora, dirigido por Inadelso Cossa, é uma coprodução Moçambicana que se mostra interessada em resgatar as memórias das pessoas que sobreviveram ao conflito. O filme se faz presente na mostra Next:Wave do Festival Internacional de Documentários de Copenhagen, o CPH:DOX 2024, cuja cobertura estamos realizando (em nosso segundo festival internacional do ano!), e foi exibido também na 74ª Berlinale, em estreia mundial.

O próprio diretor vivenciou a Guerra Civil de Moçambique quando criança. Suas memórias infantis são olfativas e auditivas, são tiros, bombas, destruição através do som e cheiro de pólvora que ainda impregnam seus pensamentos. Cossa é bastante romântico em sua expressão, ainda que se trate de um assunto tão terrível e temível. Homenageia o cinema e usa figurativamente dos equipamentos de captação de som como forma de extrair essas recordações fundamentalmente enraizadas no sentido da audição, como se buscasse respostas em ondas sonoras que ainda restem daquele tempo. “O som ajuda a captar as vozes dos mortos”, como é narrado pelo próprio diretor.

É à noite que nossos pensamentos tendem a se embrenhar em medos, preocupações, ansiedades e pesadelos. A noite ocupa, para Inadelso Cossa, exatamente esse lugar. O diretor opta por filmar tomadas noturnas para ressaltar o afloramento dessas sensações e sentimentos, mas as luzes e sombras são, por momentos, pouco nítidas e pouco tratadas, sendo visíveis as granulações da imagem. Ainda há beleza nessas composições, mas há um quê de amadorismo que incomoda um tanto.

A proposta principal da obra, que coloca a noite como esse reduto de terror, é martelada pelo diretor de forma um tanto insistente. Sua narração nos períodos noturnos é poética, porém vai se tornando cansativa quando retomada. Ele contrapõe os horrores que a noite ainda traz com a luz proporcionada pelo próprio cinema que ele cria e presta homenagens: “Traz a luz do cinema para iluminar todos os nossos medos”. A tecnologia proporcionada pelo cinema é algo que Cossa espera que possa fazer jus à retomada dessa história dolorosa.

A intimidade das cenas noturnas é intercalada com a interpelação dos familiares e conhecidos do diretor, que quer deles extrair esse período. O diretor não mostra qualquer interesse em nos contextualizar do conflito em si. É como se o projeto fosse um trabalho de superação pessoal, inclusive. Ele questiona pessoas que vivenciaram a guerra de forma muito mais clara e madura que ele. Sua avó é alvo da maior parte do direcionamento, e fala de suas recordações por vezes com algum contragosto. Notoriamente ela guarda o terror daquela época num subconsciente que não deseja ser revirado, e Inadelso Cossa quer justamente trazê-lo à tona, mas o benefício de sua provocação não fica muito claro, na medida que faz, invariavelmente, aquelas pessoas sofrerem por reviverem tudo que passaram.

Se detendo no modo de vida daquele vilarejo rural, distante de Maputo, Cossa nos entretém mostrando o modo de vida das pessoas dali, principalmente das mulheres, na realização de trabalhos manuais rotineiros. Mostra, ainda, essas mesmas pessoas de obscuro passado contando-nos sobre ele entre alguns risos que aprenderam a usar como instrumento de superação. Ele mesmo esclarece, via narração, sua intenção de contrapor e nos fazer enxergar, naquele pertencimento ao presente, o passado violento que carregam. Suas imagens sempre são muito poetizadas com essa narração que ele propõe, que jamais nos deixa esquecer que ali se faz um documentário, exposição que não prejudica a obra. 

Esse interesse pela contação dessas histórias diz muito sobre o próprio cinema africano, que valoriza a oralidade e a escuta também como forma de fazer filmes. O caminho escolhido por Cossa é, instrumentalmente, bastante típico do cinema daquele continente. Assim também o é na valorização da ancestralidade e da sabedoria por ela transferida, também através da dor e do sofrimento.

As Noites Ainda Cheiram à Pólvora é uma escolha reflexiva do diretor. É um filme de instigação de memórias que, muito embora dolorosas, querem ser tiradas pelo diretor de seu espaço de conforto como uma forma de seguir em frente, e com elas, traçar uma conexão entre gerações, entre pessoas que vivenciaram o conflito e as que jamais precisarão lidar com a vivacidade desse passado em seus pesadelos. A intenção do diretor é muito bonita, e ele constrói paralelos em imagens de forma muito poética e simbólica, mas a insistência de sua mensagem é um tanto excessiva, às vezes óbvia, às vezes um pouco amadora. Ainda assim, não é difícil adentrar nas noites que ele evidencia com fogueiras que queimam todas as dores, tal qual o próprio cinema.

As Noites Ainda Cheiram à Pólvora foi assistido na cobertura do CPX:DOX 2024, Festival Internacional de Documentários de Copenhagen, e da 74ª Berlinale.

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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