Can’t Feel Nothing | 2024
Uma reflexão sobre o impacto do esvaziamento sentimental e a busca por acolhimento online
Como a internet afeta nossas emoções? Essa é a pergunta central do documentário dinamarquês Can’t Feel Nothing, onde o jovem diretor, David Borenstein, faz sua investigação a partir de uma lacuna bastante pessoal: a percepção de sua apatia decorrente de um esvaziamento sentimental na era digital. Constantemente somos bombardeados por imagens na web, através de nossos computadores e, principalmente, de nossos smartphones, toda a enxurrada de informação que recebemos acaba nos moldando e nos manipulando de certa maneira. Voluntária ou involuntariamente, podemos nos ver presos em uma teia virtual que vai chacoalhar nossas emoções para o bem ou para o mal.
Cansado de sua vida majoritariamente digital e buscando dar sentido à sua frustração em relação às interações humanas, David busca ouvir pessoas engajadas em atividades online espalhadas por diversos lugares no mundo, para compreender melhor de que forma nossas emoções são manipuladas por indivíduos ou empresas que podem estar bem distantes fisicamente de nós. O primeiro a ser representado é um jovem gerente de uma locadora de filmes adultos em Orlando, Flórida, que tem como hobby e como uma espécie de identidade artística, ser um troll na internet. Ele sente prazer em irritar pessoas online, fazendo comentários ofensivos e impertinentes em troca de interação e engajamento.
A partir desse primeiro exemplo, David divide seu filme (que soa bastante como um estudo sociológico) em capítulos emocionais. Entre eles, raiva, amor, humilhação, medo, desejo, diversão. É interessante perceber que muitos dos entrevistados são pessoas que vendem conteúdos online, os quais eles mesmo não acreditam, como um TikToker russo ultra nacionalista, que usa sua conta para manipular e incentivar jovens a terem orgulho de seu país a serviço do governo, usando até mesmo crianças atirando com armas de bala pressão num parque de diversões, em alvos que são fotos de tanques de guerra americanos, apenas porque usar crianças no TikTok atrai mais engajamento do seu público alvo. Mas, ao ser perguntado sobre o uso do aplicativo, o criador diz que nunca deixaria seu filho pequeno ter um celular.
Outro perfil abordado é o da médica cirurgiã de um hospital local em Veles, Macedônia (conhecida como a capital da fake news), que a noite faz um trabalho como redatora para sites, onde ela cria artigos fantasiosos que viralizam na internet, envolvendo medos e teorias da conspiração, para complementar sua renda mensal. A médica, que outrora foi militante em protestos contra essa prática no meio político em seu país, e que, diante de um sentimento de impotência contra a força que move essa indústria, acaba, de certa forma, se juntando a ela. Ainda, o representante de um grupo que cria conteúdos de fake news relata como eles procuram tópicos que atinjam um público alvo mais lucrativo e certeiro, que são as pessoas que vão clicar, sem pensar duas vezes, em conteúdos que lhe interessem. Ele as descreve como pessoas que são movidas por suas paixões e emoções, como por exemplo, eleitores de Donald Trump ou feministas.
Há uma interessante discussão de pensamentos acerca de como a internet cria sentimentos e sensações para seus usuários e como eles acabam por se condicionar a somente sentí-los por meios online. Como se a vida offline fosse chata, vazia e desinteressante… e convenhamos, quem nunca pensou um pouco assim nos dias de hoje? O ato de parar em uma praça sozinho e simplesmente sentar, observar o mundo a sua volta, as pessoas, o movimento das coisas, vira um movimento cada vez mais raro quando temos, a poucos centímetros de nossos olhos, um aparelho que nos conecta com um mundo de ilimitadas possibilidades.
Can’t Feel Nothing entende esse uso excessivo das redes como um sintoma social e o vê não só como o lar de pessoas buscando preencher suas vidas vazias, mas como um negócio extremamente lucrativo que se baseia no impulsionamento e no manejo de emoções. Como comenta um psicólogo entrevistado por David, acerca de como as pessoas se alimentam da internet, mas depois de um curto período de tempo já estão com fome outra vez. É um ciclo vicioso e aprisionador, pois as emoções sentidas não são emoções genuínas de um indivíduo, são as que outras pessoas criaram meios de o fazer sentir. É sempre algo novo e que depende do ambiente virtual.
David vai a fundo em tentar compreender os mais diversos tipos de manipulação de sensações proporcionadas através da web, como a do trabalho de uma dominatrix que se autointitula como uma “Tech Dom”. Ela trabalha com fetiche e dominação de clientes exclusivamente através da internet. A emoção buscada nesse caso é a humilhação, o sentimento de vergonha, dor e culpa. Em contrapartida, o diretor mostra uma indústria chinesa de “Live Streaming” onde meninas jovens e bonitas passam seus dias em frente às câmeras em chamadas longuíssimas em troca de doações de seus clientes: homens carentes de atenção e companhia, que acabam virando seus fãs e admiradores virtuais.
Can’t Feel Nothing mescla uma investigação desse sintoma social viral, que é a busca por um preenchimento de sentido, sentimentos e sensações através da internet, com uma busca pessoal do diretor por conseguir lidar com sua própria incapacidade de sentir naturalmente as coisas em sua vida. Mostra a internet como um ambiente tortuoso e um mecanismo onde estamos inseridos em simulações e em muitas situações forjadas especificamente para chegar até nós. É uma jornada interessante de acompanhar e muito fácil de se conectar, com um assunto tão presente em nossas vidas hoje, quando condicionamos, quase completamente, nossas interações humanas, busca por entretenimento, entendimento, afeto e sustento, ao universo virtual.
Essa crítica faz parte da nossa cobertura do CPH:DOX 2024, leia mais aqui