The Labour of Pain and Joy | 2024

The Labour of Pain and Joy | 2024

A luta das mulheres contra a violência obstétrica ultrapassa as fronteiras brasileiras. A denúncia da prática de procedimentos e intervenções desnecessárias que desrespeitam a autonomia e o corpo da mulher, manifestada pela violência física, sexual ou verbal, trouxe conscientização quanto à naturalização dessas medidas, tão enraizadas nos profissionais da saúde e hospitais. Esse sistema violento está enraizado no subconsciente também de nós, mulheres, que nos vemos submetidas a dores dilacerantes ou riscos como se esse fosse o único caminho, como se algo pelo qual todas nós devêssemos passar. Sofremos e nos acostumamos com a dor, tal qual o plano estruturado para nós pelo patriarcado. 

Uma das formas de luta contra a violência praticada nos partos vem dos métodos de sua humanização. O parto humanizado realizado por doulas e parteiras é mote do filme de Karoliina Gröndahl, diretora finlandesa, em The Labour of Pain and Joy, que acompanha Kirsi, uma parteira que trabalha em um hospital e também realiza partos em casa, e a doula Anna-Riitta, que treina outras mulheres que desejam adquirir essa especialização. A jornada dessas duas profissionais perpassa a das próprias mães, nesses ambientes distintos que são o lar e o hospital, manejados para auxiliar mulheres a dar à luz, aprofundando o significado biológico do ato de parir.

O dito trabalho de dor e alegria é, claramente, atribuído tanto às doulas quanto às pessoas que dão à luz. É o trabalho como ofício que alimenta, e o trabalho de parto que coloca crianças no mundo.  The Labour of Pain and Joy nos faz traçar muitos paralelos com o documentário Incompatível com a Vida, de Eliza Capai: a água, como representação da vida, do alívio da dor, a integração da mulher com a natureza, em contextos que se alinham pela gravidez, mas que possuem caminhos e fins tão distintos – um de vida, outro de morte.

A diretora alterna a rotina de trabalho da parteira Kirsi no hospital e nas casas, nos trazendo imagens necessariamente explícitas do parto, das dores e suas mais diversas manifestações, dos incômodos e medos de cada uma das pessoas a parir. Seu trabalho é realizado com a mesma dedicação em ambos os ambientes. A diretora não deseja impor nenhuma escolha materna como incorreta: a questão é o respeito às escolhas e à dignidade da pessoa que dará à luz. Cada ambiente atende aos anseios e planos particulares de cada um, mulheres que se sentem mais seguras na estrutura hospitalar, onde também se é plenamente possível realizar um parto humanizado, outras que se asseguram no conforto de suas casas, ao lado de suas famílias, em banheiras preparadas para facilitar o parto, num espaço onde possa se sentir no controle para definir o que deseja de acordo com a intensidade de suas dores. O papel da parteira, aqui, é, primordialmente, o de assegurar respeito, e também o de conduzir, orientar, apoiar, escutar, lembrar que o corpo é sábio e se encarrega de tudo, sabe exatamente como agir. A experiência delas mostra como esse lembrete é fundamental – Eu estou segura, eu estou aberta, eu sou poderosa. Eu acredito completamente no meu corpo – são as recordações que Kirsi carrega para si mesma e suas clientes.

Imprevistos acontecem. A diretora não tenta idealizar o parto normal ou em casa. Esse trabalho de dor e alegria vem naturalmente acompanhado de riscos. A própria Kirsi, como mãe, conta como preparou, durante toda a gestação, as condições que desejava para seu parto, e precisou realizar uma cesariana. É curioso como, em se tratando de um documentário finlandês, fale-se da cesariana como última opção, enquanto no Brasil, ela por muito tempo e por muitos profissionais da saúde é tida como regra.

Anna-Riitta, a doula que também acompanhamos, exerce o papel de orientar e treinar outras doulas para o ofício de ajudar a parir. Conscientiza suas aprendizes sobre a violência obstétrica, sobre os tipos de cuidados apropriados em ambientes hospitalares, sobre a quebra de tabus sobre a gravidez, sexualidade e órgãos genitais, carregando em seus ensinamentos livros infantis que mostram, com a naturalidade necessária, as partes de uma vagina. Quebra, ainda, os tabus existentes sobre o consumo da placenta, chegando a preparar para sua cliente um smoothie com partes desse tecido, que pode auxiliar no equilíbrio hormonal, na produção do leite ou mesmo na depressão pós-parto, ainda que não haja estudo científico que o comprove.

O trabalho das doulas eleva sobremaneira o significado do parto. Mulheres em apoio mútuo conseguem gerar uma conexão um tanto inexplicável, algo traduzido pela linguagem como sororidade, mas muito maior que isso. Mães que acompanhamos relatam ter a sensação de conhecer suas doulas há muito tempo. Karoliina Gröndahl ressalta essa mística com uma reflexão meditativa que propõe através de Kirsi conectada com seu corpo, em meio à natureza, às flores, sob a água, fazendo de tudo um símbolo de fertilidade, quase como numa espécie de dança ritualística, em que ela divaga sobre sua jornada e a natureza de sua profissão.

Vida, sexualidade e morte. Esses são os pilares sagrados levados pelas doulas em suas jornadas tanto pessoais quanto de trabalho. Como mulher, é inevitável acompanhar esse misto tão complexo de dor e alegria sem se emocionar. Vislumbrar um bebê saindo do útero, em nascimento, é algo profundamente tocante, sagrado, que causa tanto aflição quanto encantamento. Acompanhar uma criança sendo conduzida no corte do cordão umbilical de sua mãe, que pariu em casa, é do mesmo modo lindíssimo.

Há uma certa quebra desse encantamento quando opta-se por trazer dados estatísticos muito específicos da realidade finlandesa. Partos em casa não são cobertos pelo sistema público de saúde é o dado final apresentado por Gröndahl. É difícil não traçar comparações com a realidade brasileira, onde sequer há estrutura para proporcionar um parto plenamente seguro em hospitais, onde cesarianas são impostas, onde mulheres são estupradas enquanto anestesiadas. Torna o todo uma questão muito europeia, muito distante de nós. 

Nota

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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