Onde está o cavalo de Straub? – Ser ou Não Ser | 1942

Onde está o cavalo de Straub? – Ser ou Não Ser | 1942

por Ezequiel Antônio da Silva Stroisch

Não é alimentado pelos mesmos alimentos, ferido com as mesmas armas, sujeito às mesmas doenças, curado pelos mesmos meios, aquecido e esfriado pelo mesmo verão e pelo mesmo inverno que um cristão? Se nos picais, não sangramos? Se nos fazeis cócegas, não rimos? Se nos envenenais, não morremos?

Shylock em O Mercador de Veneza de William Shakespeare ou ainda Greenberg em Ser ou Não Ser de Ernst Lubitsch

por Ezequiel Antônio da Silva Stroisch

O cineasta Pedro Costa conta que o camarada Jean-Marie Straub dizia só ter visto um dos cavalos de um dos faroestes de John Ford depois de ter assistido ao filme 80 vezes1. Isso mesmo. Não o cavalo, sim um cavalo. Segundo Costa, tal anedota teria sido dita por Straub para dar conta de ressaltar o senso de equilíbrio comum aos grandes diretores de cinema de Hollywood, os quais nunca deixaram que as coisas chegassem demasiado à frente – mesmo quando estavam a fotografar estrelas.  

A postura deste seleto grupo de cineastas diante das histórias representadas e dos temas por elas suscitados sempre fora coletiva. A posição assumida se encontrava em algum lugar no seio da comunidade na qual eles estavam inseridos. A questão posta pela perspectiva, portanto, era de ordem moral. Nos filmes dirigidos por Ford, Jacques Tourneur e Ernst Lubitsch2, ou naqueles protagonizados por John Wayne, Joel McCrea e Randolph Scott, percebe-se um interesse genuíno ao que é visto no fundo. A natureza recôndita das figuras ao fundo ou às margens importa tanto quanto o que é posto em primeiro plano. Por mais sedutoras que sejam estas crônicas do Velho Oeste, estes contos de horror e estas comédias românticas, não caímos em suas tentadoras armadilhas. Aquele ou aquilo que habita a profundeza ou o paralelo das imagens jamais é ofuscado. 

O espectador mais atento, a cinefilia, será convidada a olhar. Em uma nota pessoal, o redator que aqui escreve confessa ao leitor ter levado um tempo para deixar de ater-se tão somente aos nomes em destaque nos créditos iniciais. Sendo assim, dos autores, passamos aos astros. Até finalmente começarmos a reparar nestes semblantes familiares que surgem em meio aos rostos anônimos nos planos conjuntos. Eles podem ser coadjuvantes de luxo como Ward Bond e Walter Brennan ou de menor quilate como James Bell e John McIntire. Fato é que a percepção destas presenças, por mais fortuitas que elas sejam, lança outra luz à experiência. Elas são capazes de clarear aquilo que coabita a profundeza destes universos reconhecidos pelas narrativas excitantes, mas sustentados por estruturas e subtextos complexos, não raras vezes secretos. 

Trazemos à baila um exemplo para melhor ilustrar a questão que está em jogo. Em Ser ou Não Ser (1942), entre os intérpretes que compõem a trupe de teatro, destaca-se um ator lubitschiano: Felix Bressart. A face do intérprete, marcada por traços cômicos, sobretudo pelo bigode, o qual só não é maior do que o nariz, faz com que lembremos de seus papéis anteriores em Ninotchka (1939) e A Loja da Esquina (1940) – todos os títulos acima mencionados são dirigidos por Lubitsch. Neste filme que começa lançando mão dos códigos das comédias malucas e recebe tintas menos faceiras na medida em que o contexto da Segunda Guerra Mundial se impõe ao regime representativo da narrativa, Bressart interpreta Greenberg, ator-figurante da companhia que aspira a ser protagonista shakespeariano e interpretar Shylock de O Mercador de Veneza.

No emaranhado triângulo amoroso que assistimos se formar logo no início de Ser ou Não Ser, o qual ficará ainda mais embaraçado ao encontrar a trama de espionagem e sabotagem ambientada em uma Varsóvia ocupada por nazistas, Bressart convida o espectador a acompanhar uma outra história. História essa que consiste na valência do velho figurante Greenberg em manter-se resiliente, apesar das adversidades, na busca por seu sonho. Sonho esse que, dada a altura do conflito da narrativa na qual ele se inscreve como coadjuvante, nada mais é do que a manutenção da dignidade humana face ao caos. A humanidade que resiste no cenário bárbaro da guerra. O leitor pode se perguntar: como verificaremos isso? Ora, pelo único meio possível que não é outro senão a transparência da forma. Será na repetição das falas de Shylock-Greenberg-Bressart que descobriremos tal segredo. 

Recorro à descrição das sequências na tentativa de ser o mais claro possível. A começar pela primeira vez em que Greenberg compartilha da vontade de viver um protagonista de Shakespeare, em uma cena que é ambientada atrás do palco, nos bastidores. Longe do público, veremos o ator ao lado de um outro figurante e ouviremos o célebre trecho do monólogo de Shylock. A Polônia representada em Ser ou Não Ser ainda não havia sido invadida pela Alemanha. Logo, parece haver alguma esperança. Diferente da segunda vez em que o trecho acima descrito é novamente proferido. Na ocasião, os mesmos dois colegas encontram-se na rua debaixo de neve segurando não mais espadas e lanças cenográficas, mas sim pás do trabalho forçado que estão a desempenhar. A Varsóvia, já sitiada pelo exército alemão, está praticamente em ruínas. Resta pouca ou nenhuma esperança. Entretanto, Greenberg repete a fala de O Mercador de Veneza com mais altivez do que antes. Isso nos marca, por mais que esteja a correr pelas margens do enredo. 

A trajetória de Bressart para Greenberg ou de Greenberg para Bressart é concluída na terceira e última vez em que o monólogo é encenado por Lubitsch. Contemplaremos a consagração do figurante em protagonista no instante mais arriscado da jornada, quando ele se vê cercado por soldados nazistas armados, vestindo uniformes na cor preta. O dispositivo cênico não é inocente ao transformar a cena de captura em um palco de teatro, o qual definitivamente pode não ser o mais adequado para o valente artista que emergirá diante da violenta repressão dos militares, mas certamente é o devido dada a circunstância. É necessário que aquilo seja dito ali mesmo, pois é o que exige a situação. A própria plateia fardada pode não ser a mais qualificada, muito pelo contrário, mas seguramente é aquela que mais precisa ouvir o que tem a ser dito. Dessa maneira, Greenberg finalmente realiza o sonho de apresentar-se enquanto protagonista shakespeariano aos olhos do mundo. Mundo esse que, diga-se de passagem, não é apenas o mundo de 1942 sob a influência da Segunda Guerra Mundial, como também é o mundo de 2024 no contexto de novos e iminentes conflitos.

O ator Felix Bressart, assim como o seu diretor Ernst Lubitsch, nasceu na Alemanha. Eles são naturais de regiões muito próximas. Por conta da ascendência judaica, Bressart migrou para os Estados Unidos em 1933. O ator faleceu poucos anos depois de realizar Ser ou Não Ser, precisamente em 1949, vítima de leucemia aos 54 anos. O seu conterrâneo, Lubitsch, faleceu aos 55 anos em 1947. Eles viveram pouco. Certamente sofreram muito. É bonito pensar que a despeito disso tudo eles tenham se reunido do outro lado do Oceano para entregarem algumas das comédias mais cheias de graça de todos os tempos.

A presença de Felix Bressart me ensina a manter os olhos abertos para quem sabe um dia, tal qual o Jean-Marie Straub, consiga ver um cavalo num faroeste de John Ford.

  1. Pedro Costa compartilhou a história durante uma conversa na associação Porta 33, em abril de 2013.
    ↩︎
  2. Em uma carta enviada para a redação da Cahiers du Cinéma em fevereiro de 1968, a qual pode ser encontrada traduzida para o português no catálogo da mostra Straub-Huillet distribuído pelo Centro Cultural Banco do Brasil, Jean-Marie Straub inicia dizendo que os filmes de Ernst Lubitsch se tornaram tão importantes para ele quanto os filmes de Fritz Lang e Murnau. Ser ou Não Ser, longa-metragem que é apreciado no presente texto, é citado por Pedro Costa em uma aula concedida ao Festival Internacional de Cinema de Rotterdam em 2022.
    ↩︎

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