A Grandeza de Alfred Hitchcock
por Matheus Oliveira
Nem sempre Alfred Hitchcock foi reconhecido como o artista que é hoje. No passado, no campo da crítica, travou-se uma cruzada em torno da figura de Hitchcock. Os americanos o consideravam um formalista vazio, mero esteta. Já os franceses, pleno inovador da forma cinematográfica. A jornada de sua ascendência ao posto de um dos maiores diretores da história do cinema é longa e dura. Ela se inicia a partir de calorosos embates que o louvavam e que o condenavam. Estes o puseram no olho do furacão da crítica especializada.
Meados dos anos 40. Pós-guerra. A sociedade europeia passa por drásticas mudanças. Na França, a revista L’Ecran Française está no centro das discussões político-artísticas: é o cerne da cinefilia parisiense. Almeja-se completa mudança, uma varredura em tudo o que for hostil à cultura francesa. Recaem as discussões distintas a um tema no qual elas ganham unidade coesa: a renovação da cinefilia. Isto significa lançar porta afora, em nome da então chamada “Qualidade Francesa”, a influência americana da jogada. Tarefa árdua à época, uma vez que certos diretores americanos – John Ford, Orson Welles, William Wyler – eram queridos por inúmeros críticos franceses. Embora fosse britânico, Hitchcock, que já estava firme em sua fase americana, era tido como um diretor mediano – habilidoso com a técnica, mas mediano. Ao lado do trio Ford-Welles-Wyler destoava-se Hitchcock, que acabou virando bode expiatório.
Mas defensores seus também surgiram. Éric Rohmer e Claude Chabrol escreveram para a Cahiers du Cinéma calorosos artigos em defesa do diretor britânico. François Truffaut publicou o famoso livro de entrevistas Hitchcock/Truffaut, responsável por melhorar a imagem do diretor na América.
Acontece que as opiniões eram deveras mistas para que o veredito recaísse ao “bom” ou ao “ruim”. Da parte dos detratores mais cruéis de Hitchcock, tais opiniões tornaram-se hostis. Isto graças aos seus nobres defensores, compradores de briga, os “hollywoodófilos”, ou “jovens turcos” (Jean-Luc Godard, Truffaut, Éric Rohmer). Sob a benção de André Bazin – que não era lá muito hitchcockiano -, o trio se posicionou em defesa do diretor britânico contra seus algozes. Estes, partidários de um cinema militante que priorizava o tema (ou o “fundo”, como os próprios críticos franceses chamavam) em detrimento da forma, exigiam de Hitchcock deveres que nada tinham a ver com o seu método de trabalho. Consideravam seus filmes puramente técnicos e desprovidos de conteúdo e de política. Consequentemente, sua filmografia passou a representar tudo o que fosse contrário à Qualidade Francesa.
Em pouco tempo, no entanto, a L’Ecran seria confrontada com o fato de que, talvez, não fosse preciso escolher entre forma e fundo, uma vez que não havia escolha alguma a ser feita: o fundo do filme era na verdade a sua própria forma. A partir disto, insultos como “manipulador” ou “técnico” passaram a soar elogiosos. A despeito das opiniões recalcitrantes dos teóricos “do contra”, os conceitos haviam mudado, e a visão acerca de Hitchcock, idem.
Nascido em Londres, Alfred Hitchcock teve uma educação jesuítica. Pôde vivenciar os medos do corpo e da alma. Mas ele não sofria de agonias “dostoievskianas”. Seus medos eram mais imediatos: um deles, diga-se de passagem, era o da autoridade. Em Hitchcock/Truffaut, conta que temia ser preso injustamente. Tal neura, inclusive, deu origem a O Homem Errado, longa estrelado por Henry Fonda, baseado em uma história real. É a obra definitiva para se compreender o temor do diretor.
Após sua experiência com os jesuítas, ingressou numa escola de engenharia. Por lá, aprendeu de tudo: operar torno, fazer parafuso, serralheria, eletricidade e mecânica. Concluído o curso, tornou-se diretor de arte no departamento de propaganda de uma firma de engenharia. Fez por lá layouts, anúncios, etc. Tais experiências de ordem prática, ao que parece, fizeram bem para esse Hitchcock faz-tudo, à época ainda jovem.
Em 1920, Hitchcock descobre a Famous Players (futura Paramount). Ingressa nela. Estando lá, usa seus dotes anteriormente adquiridos. Com o passar do tempo, ainda na Famous Players, foi se diversificando. Entra no departamento editorial da empresa. Conhece por lá gente relevante do ramo. Aprende a escrever roteiros. Faz favores aqui e ali. Ajuda o cameraman com tomadas no set, e às vezes ele próprio as fazia. Por volta de 1922, observado por olhos atentos, teve a chance de tornar-se diretor de arte. Já nesta função mostrou-se incisivo, “dogmático”, pois se dissesse que a câmera ficaria numa determinada posição, então ela teria que ficar. Encosta-se por um bom tempo na função de diretor artístico e na de roteirista. Foi necessária a intervenção de Michael Balcon, prestigiado produtor da época, para o convencer a tornar-se diretor. “A pessoa responsável por Hitchcock foi Balcon”, revelou o próprio diretor. Outro produtor, David O. Selznick, no fim da década seguinte, teria a sua carreira mudada de vez ao chamá-lo aos Estados Unidos para dirigir um longa sobre o Titanic. Obra fadada ao fracasso, o destino fez seu trabalho: o projeto não deu certo, pois era economicamente inviável. Mas Hitchcock ainda seria diretor. O filme da vez seria Rebecca – A Mulher Inesquecível, vencedor de dois Oscars, estrelado por Joan Fontaine e Laurence Olivier.
Prático desde os tempos da firma de engenharia, este espírito reverberou em seu ofício de diretor. Na sua execução, não aceitava meio-termo. Antes das filmagens, Hitchcock e seu cameraman arquitetavam toda a “planta” do que iam filmar. Uma vez estando no set ou na locação, nada era filmado sem que antes não tenha sido minuciosamente planejado. O diretor, em entrevistas que deu, explicava seu jeito metódico de trabalhar: quando escolhia os seus projetos, era bastante seletivo. Lia o roteiro; e se gostasse, é porque era visualmente adaptável, possuidor de um relevante “motivo visual”. Do roteiro tirava uma ideia geral, um sentimento, ou então uma situação psicológica. Organizava suas ideias em storyboards, através da decupagem, a fim de atingir o efeito desejado e não menos do que isso.
Para Hitchcock, a montagem é tudo. Ela sustenta o seu cinema. Citava sempre o método do cineasta soviético Lev Kuleshov para exemplificar o seu cinema. O método citado (Efeito Kuleshov) consiste em uma montagem demonstrando um rosto de expressão neutra intercalado com imagens situacionais que tenham significado para o espectador: no experimento, são intercaladas com o rosto neutro as imagens de um prato de sopa, de uma criança morta num ataúde e a de uma mulher elegante deitada em um sofá. Tais imagens distintas, justapostas ao rosto neutro que as observa, o fazem parecer dotado de expressão, quando se trata na verdade de um truque: a expressividade das gravuras induz a mente do espectador a modificar as expressões faciais do sujeito mediante o que ele “vê” e “julga”. Trata-se de uma ilusão, de uma artimanha psicológica: é a técnica direcionando o olhar do espectador.
Melhor exemplo de Kuleshov posto em prática por parte de Hitchcock é o seu filme-testamento, Janela Indiscreta, no qual é exposta a ideia do cinema como instrumento voyeurista, como janela para o mundo – ou para a vida alheia. O ator James Stewart interpreta o fotógrafo bisbilhoteiro L. B. Jeffries, a “cobaia” que realiza a montagem como ferramenta associativa. A bisbilhotice vira pretexto para explorar as peripécias das quais a câmera é capaz: invadir o espaço alheio, vigiar outras vidas, assim enriquecendo o entorno do quadro com a vastidão de vivências em simultâneo.
O filme inicia-se com um ritmo manso, despretensioso. Observações “naturalistas” do ambiente geral parecem nos dizer que nada de anormal poderia ocorrer naquela pacata vizinhança. A inquietação do protagonista, no entanto, invalida o palpite. Jeffries, através de suas enormes janelas, fuxica as redondezas (é da sua natureza este enxerimento). A partir de certo momento, de tanto vasculhar, nota nas proximidades algo incomum: um homem de cabelo grisalho mata a própria esposa e guarda o corpo em um baú. Mostra-se então o que o fotógrafo “registra” e a sua reação ao registro. Tal dinâmica se repete com tanta frequência a ponto de a curiosidade do personagem se metamorfosear em narrativa: jamais saberíamos da morte da mulher, não fosse a curiosidade inquietante do fotógrafo. Aliás, é através desse ponto de partida – a curiosidade – que ocorre uma implícita e, digamos, metalinguística troca de papéis: Stewart, estático em sua cadeira de rodas e entretido com sua vizinhança, toma para si o papel de espectador; ao passo que nós, espectadores, presos em nossas cadeiras e sofás, tornamo-nos L. B. Jeffries.
Embora a atuação de James Stewart fosse definitiva para os resultados técnicos e estéticos do filme, ela, para o diretor, era só mais uma das inúmeras engrenagens de seu vasto sistema fílmico. “Hitch está mais interessado na atuação da câmera”, lamentou certa vez o próprio Stewart. Com efeito, Hitchcock não queria atores, no sentido de não querer seus brilhos próprios. Eles atuavam do jeito que o diretor pedia, e não havia espaço para improvisos. Olhavam para onde eram instruídos a olhar: isto só era feito para que contribuíssem na hora que Hitchcock fosse montar suas cenas “kuleshovianas”, previstas meticulosamente nos storyboards. Criando joguinhos para fazer com que os atores pensassem que estavam contribuindo para a construção dos personagens, o diretor discutia com eles como se estivesse interessado no que pensavam. Sentava-se com o elenco no set, pedia café e batia um papo como se não tivesse com pressa alguma. Depois se levantava e demonstrava, fisicamente, como enxergava as melhores reações do personagem na cena que era rodada. Preocupado com a atuação física, insistia no modo como os atores deveriam correr, subir escadas ou simular uma queda no chão. Aos poucos, ia convencendo cada um a entrar no molde que ele já tinha imaginado. Atores e atrizes, nas mãos de Hitchcock, eram apenas meios para seus fins artísticos.
O cineasta, no entanto, não deixou de ter problemas com alguns deles: uma nova leva de discípulos do método Stanislavski. Paul Newman (Cortina Rasgada) era um. Pedia-lhe que olhasse para uma determinada direção da forma mais simples possível, e ele chiava. Precisava antes internalizar o drama, voltar aos traumas de infância, soltar um semblante sôfrego para invocá-los. “Newman era imprevisível e queria discutir motivações”, disse Hitchcock. Havia um choque de intenções, de egos, um descompasso inconciliável entre o astro e o mundo do diretor. A partir destes embates, é possível notar em Hitchcock a importância da atuação convencional em detrimento da outra, para si inócua. Achava-a incompatível com sua preparação e planejamento meticulosos. “Isso não é atuar, é escrever”, disse Hitchcock a respeito do método Stanislavski, que frustrava o seu controle artístico e, consequentemente, a sua ideia de montagem. Aliás, criticava não só os atores jovens, como também diretores, que à toa se utilizavam de ângulos extravagantes e os que, na preguiça de criar engenhosa decupagem, esbanjavam a câmera na mão.
Para não dizer que não tentou inovar, Hitchcock teve suas experiências com o plano-sequência: Festim Diabólico (seu primeiro filme colorido) e Sob o Signo de Capricórnio, duas obras “teatrais”, esta última louvada pelos Jovens Turcos. Mas não gostou do que realizou. Sentiu que fugia da essência do que sempre fez – aliás, que traía uma lei fundamental do cinema: o tempo nos filmes, dizia, não deveria fluir como na vida real. “O plano contínuo não pertencia ao cinema”, declarava. No fim das contas, sua praia era mesmo outra: o tempo – seja dilatado ou comprimido – manipulado pela montagem.
Numa entrevista concedida a Peter Bogdanovich em Afinal, quem faz os filmes?, Hitchcock, sobre a cena da luta em Janela Indiscreta entre os personagens de James Stewart e Raymond Burr, revela:
“[A luta] foi toda realizada a partir de montagens e cenas individuais. Uma cabeça, um braço, um pé – isso leva o público direto para dentro da luta. Quando se permanece à distância, tudo fica também muito mais fraco. Assim, aquela luta foi trabalhada deliberadamente, porque percebi que, se filmada à distância, resultaria em nada – seria só uma luta.”
Alfred Hitchcock tinha a habilidade de resumir o que o público desejava assistir em matéria de cinema. Conhecedor do psicologismo por trás das conciliações feitas pelo espectador acerca da justaposição dos planos, ele tinha tudo calculado. Se não gostava de assistir a seus próprios filmes no telão em meio à multidão para fisgar-lhe as reações, é porque já no set, enquanto trabalhava, tinha de antemão a reação dela. Parte desses espectadores, no entanto, reagiu de modo distinto: os Jovens Turcos imbuíram de subtextos metafísicos a mise-en-scène do diretor. Seus filmes passaram a ser sobre culpa religiosa (A Tortura do Silêncio), a tratar do Complexo de Édipo (Psicose). Hitchcock nunca afirmou a veracidade de tais constatações, mas também nunca as negou. De qualquer modo, o silêncio foi seu triunfo. Hoje encontra-se no panteão dos titãs do Cinema.