Jardim dos Desejos | 2022
Uma jornada de reflorescimento
“Jardinagem é uma crença no futuro. Uma crença de que as coisas acontecerão de acordo com o plano. Que a mudança virá no seu devido tempo”.
Narvel Roth em Jardim dos Desejos.
Na vida as coisas mudam. Às vezes, trilhamos os caminhos mais inesperados, incompreensíveis até então, inspirados por uma crença momentânea, um lapso existencial, um instante em que encaramos nossa difícil condição de liberdade e somos lançados a todas as responsabilidades que ela nos impõe. Em Jardim dos Desejos, Paul Schrader mantém sua estrutura tradicional, seus temas recorrentes, como a redenção. O passado não podemos apagar, mas nossos atos podem redimi-lo porque já não somos mais os mesmos.
O “herói” da vez é Narvel Roth (Joel Edgerton), que, a princípio, nos é apresentado como o jardineiro da propriedade Gracewood, funcionário de Norma Haverhill (Sigourney Weaver). Aficionado por jardinagem, Narvel descreve em seu diário as metáforas que retira da natureza para expressar seus dilemas internos. Uma dessas passagens reflexivas vai ressoar em todo o filme: a descrição de três tipos de jardins – os franceses, geométricos, totalmente manipulados e enquadrados; os britânicos, informais, aqueles que seguem o fluxo da natureza; e os selvagens, estes que se revelam como um emaranhado de folhas e flores lutando por espaço. Em certos momentos, essas três formas aparecem na vida de Narvel.
A estrutura narrativa segue o já conhecido molde dos filmes escritos e/ou dirigidos por Schrader. Seu interesse por personagens que lutam consigo mesmo, com suas crenças e seu passado, já rendeu grandes filmes, como Fé Corrompida (2017), que escrevemos aqui. São homens que vivem momentos de tensão enquanto se preparam para um grande evento final, voluntariamente ou não. Em Jardim dos Desejos, Narvel já é uma pessoa redimida com seu passado, mas precisa novamente se provar devido aos fatos que se sucedem. Em Hardcore: No Submundo do Sexo (1979), o personagem de George C. Scott é um pai de fé inabalável em busca da filha. Em O Dono da Noite (1992), Willem Dafoe é um traficante que precisa lidar com os dilemas morais de seu emprego no crime e se preparar para seu fim, já que sua chefe planeja sair da ilegalidade. Ethan Hawke, em Fé Corrompida, é um pastor organizando uma celebração para o aniversário de sua igreja centenária, ao mesmo tempo em que perde as esperanças na instituição e na humanidade.
Desses exemplos da carreira de Schrader, apenas Hardcore não é narrado em primeira pessoa. A presença do diário como confidência das angústias dos personagens e suas reflexões é muito marcante nas outras duas obras, assim como o diálogo interno de Travis Bickle (Robert De Niro) em Taxi Driver (1976), do qual foi roteirista. Talvez o mais próximo de Jardim dos Desejos seja Fé Corrompida. Aos poucos vamos sendo apresentados à densidade dos sentimentos daqueles personagens, o pastor e o jardineiro. Para eles, a escrita, ao mesmo tempo em que se assume como algo indizível fora das páginas, é o meio pelo qual transitam memórias que nos revelam quem são aqueles homens.
Então, o jardineiro guarda camadas muito mais complexas do que aparenta. Edgerton imprime uma formalidade à sua atuação que contribui para a aura enigmática que carrega a primeira parte do filme. Seu olhar sempre centrado e a devoção que tem para cuidar das plantas e obedecer às ordens de sua patroa, escondem alguma obscuridade do passado, algo que começamos a perceber por alguns flashbacks. Tudo começa a fazer mais sentido quando vemos suas tatuagens: Narvel Roth é um supremacista branco, carregando no peito, costas e braços, os símbolos do neonazismo.
De imediato, a surpresa gera repulsa, e estamos totalmente armados (ou deveríamos estar) contra o nazista. Entretanto, submetido ao clima que Schrader implica em seu filme, logo o espectador humaniza o personagem. Estabelece-se uma conexão metafísica entre Narvel e aquele jardim. Seu trabalho meticuloso, a devoção que tem à terra, o estudo sobre a dinâmica das flores, plantas, frutas, tudo isso se junta à uma constante trilha sonora, para dar o tom com o qual o diretor enxerga aquele homem. Não mais um nazista, mas alguém que encontrou ali um outro modo de existir. Desconfiávamos que ele escondia um segredo, porém não seria mais esse o melhor verbo. Podemos dizer que há um passado inapagável, não escondido, mas aparentemente superado.
Convivendo com suas marcas, Narvel está de bem com sua nova vida. Dedica-se ao máximo na organização do grande evento de caridade que acontecerá em Gracewood Gardens, proposto anualmente por Norma Haverhill. Esta é uma personagem que funciona como um contraponto do jardineiro, muito mais guiada pelos impulsos. A relação entre os dois tem um sentido diferente para cada um deles. Enquanto para Narvel parece ser o preço a se pagar por aquela nova vida, Norma sente atração sexual pelo corpo do jardineiro e os símbolos que representa. Pedir para que o amante-empregado tire as roupas para que possa observar suas tatuagens nazistas é seu fetiche; é a aristocracia transando com o fascismo.
Até aqui a construção de Jardim dos Desejos é muito eficiente, com personagens enigmáticos, uma ambientação estranha, um universo próprio e mítico, além do espaço-tempo. A inclusão de um outro círculo narrativo não só interrompe esse que nos guiava, como acaba por reverter a complexidade de sentimentos ali instaurados em resoluções muito convencionais.
Maya (Quintessa Swindell) é a sobrinha-neta de Norma, jovem de vinte e poucos anos que perdeu seus pais e é viciada em drogas. A Srª Haverhill, no auge de sua falsa bondade, resolve trazer a “parente mestiça”, como ela própria se refere à garota, para trabalhar em Gracewood Gardens como aprendiz de jardinagem. Como diz, a aristocrata sentiu a necessidade de fazer algo para ajudar a sobrinha-neta. Relega a função de mentor a Narvel Roth, vislumbrando que ele dê todo ensinamento possível sobre a propriedade e faça dela a herdeira que dará sequência ao precioso jardim.
A chegada de Maya cria um triângulo amoroso. Narvel acaba se sentindo atraído pela jovem, enquanto Norma se inflama de ciúmes. A aprendiz faz um bom serviço, demonstra-se solícita e dedicada ao ofício. Mas quando seu problema com drogas afeta aquele espaço-tempo alienado de Gracewood, as coisas começam a dar errado. Ao desconfiar de um romance entre os dois, Norma os expulsa da propriedade.
O ex-nazista e a jovem negra agora perambulam entre resolver os problemas de Maya com traficantes e o receio de Narvel em se envolver com ela e revelar seu passado. É esta a jornada de provação pela qual o jardineiro tem que passar. Ajudá-la a se reerguer é a expurgação de seus pecados. Os dois se entregam ao afeto, mesmo após Maya descobrir as tatuagens de Narvel. Ela pede para que ele tire a roupa, observa suas marcas e pergunta: você irá apagá-las? Ele responde que sim. A rima de oposição ao fetiche de Norma com os símbolos nazistas. Maya o humaniza e o confirma como um bom homem.
A outra confirmação da bondade do jardineiro é quando ele vai resolver o problema de Maya com os traficantes. Estes são dois jovens que aparentam pouca ou nenhuma ameaça. Mesmo com a possibilidade de matá-los, Narvel não o faz, porque já não é o mesmo homem violento de antigamente, apenas deixa-os com algumas marcas. Essa conclusão vem a partir de um conjunto de artifícios simplórios que fazem Jardim dos Desejos perder força, como os dois traficantes descobrirem as origens de Narvel com uma facilidade inexplicável, entrarem em Gracewood e vandalizarem os jardins. Ou então a incrível imbecilidade dos dois, após cometerem o ato e sequer se esconderem, já que sabiam da possível retaliação de um, para eles, nazista.
As resoluções convencionais das quais falamos acabam por prejudicar a premissa inicial de um complexo emaranhado de sentimentos, culpa e redenção. A vida organizada, geométrica e formal, como os jardins franceses que cita no começo do filme, é a oposição àquela de selvagerias que um dia viveu. Por outro lado, entregar-se ao movimento natural das plantas, à informalidade dos jardins britânicos, pode ser o melhor caminho de ressignificação. Não tanto a culpa e o autoflagelo, mas a aceitação de que uma nova porta se abriu, de uma conexão espiritual que faz a nova vida.