Hacking Hate | 2024

Hacking Hate | 2024

Jornalismo investigativo pelas mãos de uma mulher branca na luta antirracista e contra a disseminação do ódio nas redes sociais

Qual o lugar do privilegiado branco na luta antirracista e contra os crimes de ódio? Se é certo que a consciência da necessidade de perda de alguns privilégios, que por séculos foram construídos em prol de pessoas brancas, é um passo fundamental, usar deles, enquanto existem, a favor da luta, também o é. My Vingren é uma jornalista investigativa sueca premiada, conhecida como girl with the dragon tattoo da vida real, já que acessa as profundezas das redes sociais para denunciar esquemas relacionados a supremacistas brancos. Em Hacking Hate, documentário dirigido por Simon Klose, que integra a mostra competitiva do gênero no Tribeca Film Festival, acompanhamos a jornalista por três anos durante uma investigação que a coloca em altíssimo risco. Ela cria perfis fakes de famílias brancas completas, direcionando-as para um certo perfil nacionalista e ligado ao assustador movimento white pride na Europa, para acessar grupos extremistas e buscar seus responsáveis. Invariavelmente, seu caminho vai trazer à baila questionamentos sobre o papel e os deveres das grandes corporações na disseminação do discurso de ódio pelo mundo, uma vez que detêm, claramente, o poder de controlar o que circula ou não em suas redes.

O que My Vingren cava e revela dessas profundezas é muito assustador. Supremacistas brancos dominam canais no YouTube, no TikTok e redes sociais abertas sem qualquer necessidade de se esconder. Abertamente usam do discurso “It’s ok to be white”, que não é diretamente tido como criminoso, e instigam milhares de pessoas através de vídeos e memes racistas, nazistas e xenofóbicos carregados de um discurso “bem humorado” (entre infinitas aspas) e linguagem desumanizadora, facilmente circuláveis com um mero clique. Existem hashtags específicas para atrair o público pretendido. Há uma estratégia bem delineada pelos criminosos. As redes abertas delimitam pessoas do mesmo nicho de pensamento num determinado espaço, atraindo-as para grupos fechados, por exemplo, no Telegram. Nesses grupos, movimentos são articulados, inclusive, para encontros presenciais. 

A jornalista consegue traçar um perfil bem específico de pessoas que são atraídas por tais discursos de ódio. Geralmente, são homens, jovens e solitários, com pouca vida social, que encontram, nesses grupos, um espaço de pertencimento. Muitos foram os ataques armados perpetrados por esse perfil, com transmissão ao vivo em redes sociais. Muitos poderiam ter sido evitados caso as grandes corporações levassem a sério as políticas de combate ao ódio. Entretanto, para essas empresas, o ódio dá lucro. Não há interesse real algum em combatê-lo e mesmo evitar mortes enquanto houver ganho de capital.

Ao deparar-se com as corporações, My Vingren busca em Anika Collier Navaroli, ex-funcionária do então Twitter responsável pela regulação da rede e por banir Donald Trump da plataforma após disseminar conteúdo inapropriado e incitação à violência, e Imran Ahmed, um pesquisador que foi processado por Elon Musk por denunciar o discurso de ódio no já X, alicerces para incrementar sua investigação. Ambos são pessoas não brancas que já estiveram inseridas nessas gigantes do capital, e dão conta de nos revelar que é direta, sim, a responsabilidade das empresas pelos crimes cometidos em suas redes, uma vez que o suposto esforço realizado contra o discurso de ódio é falacioso e não se aplica a todas as pessoas igualmente. Basta lembrarmos do incidente de 06 de janeiro nos EUA.

A estrutura necessariamente investigativa de Hacking Hate, que vai nos mostrando as provas e interações que a jornalista obtém nas redes, é muito atrativa e mantém o pertinente tom de alerta e estranheza diante daquelas revelações tão asquerosas e assustadoramente reais e perigosas. My Vingren usa do seu lugar de mulher branca e se coloca em risco quase (porque nunca o será, por óbvio) que se igualando às minorias pela qual ela luta. Recebe ameaças de morte e já necessitou, em outras investigações, de proteção policial em sua residência. É fato que a realização do documentário, por si só, a coloca sob perigo uma vez mais.

De seus perfis fake, ela descobre um possível mandante e articulador de diversos movimentos supremacistas brancos (nazistas, skinheads, neonazistas, racistas, homofóbicos, todos estão no mesmo lugar). Um perfil identificado como Vincent parece estar presente em redes diversas, organizando festas presenciais e recrutando pessoas. Curiosamente, ela localiza sua real identidade, e descobrimos tratar-se de um americano cuja mãe é brasileira, e que já relacionou-se com diversas mulheres negras, que o denunciaram por violência doméstica. De líder do movimento Nordic Federation, ele passa a residir na Rússia e atuar como recrutador do Grupo Wagner. E veja-se, ao que revela, provavelmente reside no Brasil nos dias de hoje.

O trabalho meticuloso de três anos de My Vingren rende 14 páginas de artigo para a revista a qual escreve, e o documentário aqui comentado. Ela finda por interligar os maiores líderes mundiais da extrema direita (Trump, Putin, Milei e Bolsonaro aparecem em sua denúncia) aos discursos de ódio e sua incitação, como facilitadores da circulação criminosa que ocorre nas redes. Num formato documental mais convencional, ela é o principal personagem e vai demonstrando seu trabalho por meio de projetores, laptops e compartilhamento das telas para que vejamos, tal como ela, o aterramento causado não só pela explicitude do que é denunciado, mas pela naturalidade com que circulam sem que haja um interesse genuíno de interrupção do discurso. O futuro das redes sociais, como é afirmado por  Anika Collier Navaroli, é assustador. 

Nota

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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