Missing From Fire Trail Road | 2024
O trauma geracional das mulheres indígenas nativo-americanas
De acordo com o Centro Nacional de Treinamento da Justiça Criminal dos EUA, quatro a cada cinco mulheres indígenas nativas daquele país já experimentaram algum tipo de violência. Três a cada cinco delas já foi estuprada. E ainda, duas a cada cinco dessas mulheres são vítimas do tráfico de pessoas. A diretora Sabrina Van Tassel parte dessa assombrosa e estarrecedora estatística para revelar o descaso social e estatal perante as comunidades indígenas, especialmente através da história de Mary Ellen Johnson Davis, uma nativo-americana que desapareceu em 2020, no dia de Ação de Graças, na Reserva Indígena de Tulalip. O caso nunca foi desvendado, e quatro anos depois, a família ainda busca por notícias. Missing From Fire Trail Road se torna o grito das tantas mulheres nativo-americanas relegadas à violência e à omissão governamental, que lutam por sobrevivência e pela justiça por seus pares.
Van Tassel, que já foi premiada em 2020 no Tribeca Film Festival pelo documentário The State of Texas vs. Melissa, sobre a primeira mulher hispânica condenada à morte nos EUA, é uma diretora que se mobiliza e percorre feridas sociais já há muito gangrenadas. Quando recebeu o prêmio naquele ano, já mergulhava na história das muitas Mary Ellen desaparecidas pelo país. Consciente de seu lugar de mulher branca e se reconhecendo incapaz de realizar um filme sobre mulheres indígenas sem elas ao seu lado, a cineasta se alia à Deborah Parker, ativista e líder indígena, que produz o documentário e indica o caminho que a diretora precisa seguir.
Missing From Fire Trail Road é um trabalho necessariamente amargo, que causará sensações que vão desde a náusea ao inconformismo. Mantendo uma atmosfera densa e mística, sob uma fotografia mais escura e azulada que vai tornar tudo ainda mais desolador, a tensão e agonia das irmãs e familiares, que lidam com a incerteza da morte de Mary Ellen e carregam uma constante ânsia por notícias salta da tela para pousar em nosso consciente. Tal como os sentimentos da família, o filme vai oscilar entre a angústia e a esperança, essa última encontrando seu lugar, principalmente, no clamor coletivo dos protestos realizados por mulheres e homens da comunidade. A dor individual ganha outro significado quando preenchida e partilhada pela coletividade, que faz brotar força de onde parece impossível.
Van Tassel, sempre ao lado de Parker e das familiares de Mary Ellen, vai percorrer conosco os passos dessa vítima, os últimos lugares que ela supostamente teria estado, a casa onde ela residia com o marido abusivo, a interminável e retilínea Fire Trail Road, a estrada onde ela teria desaparecido. Para além dessa apuração material do crime, a diretora adentra os traumas individuais e geracionais de Mary Ellen. Trata-se de uma mulher que foi, juntamente com sua irmã mais velha, retirada de seu lar e da comunidade de Tulalip ainda criança, pelo que deveria ser o Serviço de Proteção à Criança estadunidense, que a entregou à adoção para uma família branca, onde foi vítima de abuso e violência sexual constantes. Foram, posteriormente, indenizadas pelo Estado. O dinheiro de Mary Ellen foi roubado pelo marido. Ao retornarem para Tulalip, já eram mulheres absolutamente traumatizadas, com problemas de saúde relacionados ao álcool e às drogas, vítimas fáceis do relacionamento abusivo, feridas imensas demais para encontrar qualquer tipo de cura. Na investigação familiar que a diretora faz, assustadoramente descobre que todas, repita-se, todas as mulheres da família de Mary Ellen já foram vítimas de abuso sexual. O trauma, portanto, é geracional.
O crime não solucionado relativo à uma única mulher encontra motivação em algo ainda mais profundo que a violência ao indivíduo: a perpetuação do colonialismo, que encontra, através da omissão do Poder Público e da construção de uma sociedade racista e misógina validada pelo Estado, novas roupagens para continuar existindo e exterminando povos originários. Lembremos que Martin Scorsese, de forma soberba, retratou a estratégia de assassinato e extermínio do povo Osage em Assassino da Lua das Flores. O próprio sistema de justiça dos Estados Unidos não permite que a polícia local das comunidades indígenas solucione casos de desaparecimento e homicídio de pessoas nativas, crimes e ocorrências cuja investigação é de competência federal. Portanto, crimes contra pessoas indígenas concorrem com outros casos federais que sempre serão tidos como mais relevantes e importantes. O menosprezo pela vida indígena é amplamente naturalizado pelo Estado, numa política já tão bem introduzida que é absolutamente normal que homens brancos se vejam no direito de violentar mulheres indígenas.
Se o trauma é geracional, a sensação que fica é que a solução é, de fato, ancestral. A organização coletiva, ainda que pequena, faz fortalecer os laços e a cultura, que às duras penas, em que pese pareça deslocada, sobrevive e se sustenta a cada dia, através dos ensinamentos transmitidos oralmente dos mais velhos para os mais novos, como forma de proteção sagrada àquilo que não pode se perder. A dor trazida por Missing From Fire Trail Road não é apaziguada, mas encontra analgésico na integração e na união de pessoas às suas origens, em ares místicos mantidos por Van Tassel que soam quase como sussurros de uma natureza que se coloca ao lado de tudo.
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