Arzé | 2024

Arzé | 2024

O road movie da mãe solo pelas ruas de uma Beirute setorizada pela religião

As ruas, bairros e religiões de Beirute, capital do Líbano, se tornam palco para dar vida à Arzé, primeiro longa-metragem da diretora Mira Shaib, que integra a mostra Viewpoints do Tribeca Film Festival. Arzé (Diamand Abou Abboud) é a protagonista-título, uma jovem mulher e mãe solteira, que vende esfihas típicas de verdura, feitas com esmero em sua casa, para sustentar o filho, Kinan (Bilal Al Hamwi) de quase 18 anos e a irmã, Layla (Betty Taoutel), que vive enclausurada aguardando o retorno do marido desaparecido.

A luta de Arzé se resume à busca por melhorias que facilitem a execução de seu trabalho: ela quer comprar uma moto scooter para que o filho possa realizar, com maior rapidez, as entregas das encomendas que ela recebe. A dificuldade é que não há dinheiro para tanto, e acompanhamos, então, as manobras desesperadas da personagem, que finda por endividar-se e furtar as joias de sua irmã para adquirir o veículo almejado. Presenteando o filho com a scooter, ela não só recebe a ingratidão do moço, que tem outros planos para sua vida, como as críticas da irmã, que teme pela segurança do sobrinho. Dito e feito, Kinan usa a moto para passear com a namorada e é roubado. Arzé e seu filho, então, correm contra o tempo e pelas ruas de Beirute em busca da moto roubada, numa espécie de road movie de bairro, percorrida ora por ônibus e táxis, ora à pé.

Mira Shaib usa da comédia-dramática como mote para estabelecer uma narrativa um tanto novelesca, que funciona quando se assume mais como comédia, mas é menos eficaz quando pesa no melodrama. A diretora imprime um exagero que é caricatural nos personagens coadjuvantes que Arzé vai cruzando pelo caminho, e cômico nas composições cênicas que reforçam as complexas diferenças político-religiosas daquele lugar. Quando numa região cristã de Beirute, Arzé adentra uma casa que possui, só em um cômodo, uma dezena de objetos religiosos, cruzes de todos os tamanhos, santos diversos e convenientemente vultuosos. A própria personagem, para circular nesses ambientes, se adorna conforme cada situação, usando um colar em forma de cruz em um momento, e cobrindo os cabelos com um lenço em outros, adequando, ainda, o sotaque e o nome do filho de acordo com cada lugar, agradando e convencendo a todes com sua comida. Essas capas que ela vai assumindo dão conta não só da versatilidade daquela mulher que se adapta a qualquer situação para poder sobreviver e atingir seu objetivo, como nos dá um bom panorama sobre os abismos que setorizam a capital e as pessoas, apesar das caricaturas. Cristãos maronitas, muçulmanos e refugiados, dividem um mesmo espaço físico em termos de cidade, mas possuem demarcações sociais e políticas que os mantém isolados uns dos outros. “O que inclusivo significa?” é a pergunta que Arzé faz, deixando evidente que ali, não há qualquer esforço para inclusão. 

O espaço destinado ao drama de Arzé, entretanto, destoa daquilo que seria uma novela até que equilibrada, para carregar um melodrama que soa desrespeitoso com a personagem. O rumo muito óbvio que as coisas tomam, a atenção excessiva que se dá ao arco paralelo do filho que quer ir para a Europa de barco e passa a desrespeitar e humilhar a mãe, em detrimento do que seria a história de superação da mulher, o isolamento e a culpa injusta sobre os ombros de Arzé, tudo rende diálogos que beiram o constrangimento tamanha sua previsibilidade, apesar do ótimo trabalho de Diamand Abou Abboud. A trilha sonora árabe moderninha poderia funcionar se houvesse maior clareza quanto aos rumos que a narrativa pretendia seguir, mas fica confusa e até cafona quando inserida.

Apesar de todos os desafios enfrentados pela protagonista, a diretora entrega tantas pistas sobre os futuros acontecimentos que jamais somos surpreendidos. O prenúncio da má-ideia na aquisição da scooter, a todo momento reforçado pela tia que teme pela integridade física do sobrinho e pela mãe que reforça o uso do capacete escancaradas vezes, só não é pior porque, ao invés de causar um acidente, a moto é roubada. 

Arzé guarda momentos interessantes quando compõe compartilhamento e feminilidades com as duas personagens irmãs. É bonito quando a diretora nos mostra a troca entre elas, enquanto uma cozinha, a outra pinta as unhas e enrola os cabelos, e há cumplicidade nesses gestos simples. Essa bonita sororidade se perde quando vemos o único personagem masculino dominar aquelas duas mulheres e se tornar a única preocupação de suas vidas, além de agir de forma violenta com a namorada quando num acesso de raiva que a faz encurralar na parede. Arzé, por fim, encontra sua redenção com rebeldia, afronta e bom humor, elementos que brigaram tanto com o melodrama durante o filme, que deixam a estranheza de um final feliz que sempre soubemos que aconteceria.

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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