Don’t You Let Me Go (Agarrame Fuerte) | 2024

Don’t You Let Me Go (Agarrame Fuerte) | 2024

Um abraço no surrealismo poético, para contar uma história de afeto e perda

Existem infinitas maneiras de se retratar a dor da perda no cinema, algumas mais óbvias e expositivas, optando por mostrar a linearidade dos fatos e as relações de luto com certa crueza, apatia ou muita intensidade; outras mais criativas, com escolhas poéticas e com mais flexibilidade narrativa, como é o caso do filme uruguaio Don’t You Let Me Go, dirigido por Letícia Jorge e Ana Guevara, que conta com uma equipe totalmente feminina, desde o roteiro até a produção do longa.

O primeiro ato do filme mostra o angustiante ritual de passagem da jovem Elena, uma mulher radiante, de cabelos ruivos, que se foi cedo demais. Primeiramente a conhecemos por uma fotografia iluminada em cima de seu caixão fechado, rodeado de amigos e familiares. No ambiente frio de uma sala funerária, segue-se um velório ao som de lamentos, choros e certo silêncio. Percebemos que o tempo dispensado nas cenas do velório são importantes para evidenciar o elo forte que existia entre a falecida e seu grupo de amigas. Especificamente temos maior foco em sua melhor amiga, Adela, que sente uma dor estonteante, mas que é amparada por uma rede de apoio feminina. Ao lado de Adela, mais três jovens mulheres se confortam em meio às frias flores de adorno fúnebre, dentro da sala com paredes de madeira e divisórias de vidro. 

As diretoras gostam de brincar com reflexos, como a visão das nuvens estampadas no para-brisa do carro de Adela, que logo após uma crise de choro descontrolada dentro do veículo, sai e contempla a calmaria das nuvens que acompanhamos passando lentamente em segundo plano através do vidro. Os reflexos são como fantasmas, assim como a lembrança de sua amiga Elena, nuances intocáveis, mas bastante presentes. Saindo da sala de velório, direto para a rua ensolarada, Don’t You Let Me Go muda de tom, começando a nos fazer adentrar em uma jornada de memória e saudade. 

Passamos então a conhecer a moça de cabelos alaranjados mais profundamente, quase sempre vestindo roupas em tom de amarelo vibrante e com personalidade cativante, através de um misto de recordações de Adela, onde junto de mais uma amiga e seu filho pequeno, partem para uma breve viagem em uma cidade costeira. Sem que o filme nos dê qualquer indício prévio, ele assume características lúdicas que transbordam um lirismo encantadoramente sutil. Como, por exemplo, quando Elena e Adela estão sentadas na praia e Adela sacode seu tênis, a fim de tirar o excesso de areia, essa areia começa a jorrar incessantemente e parece não ter fim, como os recursos surrealistas figurativos utilizados às vezes por diretores como Michel Gondry em “A Espuma dos Dias” ou em “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”. 

Dentro da pequena casa onde as amigas passam alguns dias juntas, as diretoras abrem espaço para momentos gostosos de intimidade, como quando se embebedam e dançam ao som de David Bowie na sala pouco iluminada. Mas também, passam por algumas situações de perigo e medo, como a desconfiança de uma invasão na residência, que fazem Elena, a mais destemida de todas, buscar ajuda de um estranho que passava de carro. Parece haver um elo invisível e místico no ambiente, nos fazendo lembrar de que, o que estamos assistindo não se trata exatamente de um flashback, mas sim, de um emaranhado de recordações que não ocorreram necessariamente conforme foram mostrados.

Agarrame Fuerte”, título original que expressa tão melhor a essência do longa, é um filme sutil e extremamente poético. Partindo da rigidez protocolar de um ritual de despedida, envolto em lágrimas e dor, se torna um refúgio lúdico de lembranças muito afetuosas entre amigas. Esse elo feminino fortíssimo é coroado com a delicadeza e genuinidade das relações e das escolhas narrativas da dupla de diretoras. Tratar a partida como uma passagem, não como o fim, torna o filme uma obra singela e muito bonita, de encher os olhos com os retratos sentimentais de uma amizade que foi forçada a acabar.

Nota

Author

  • Mari Dertoni

    Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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