A Mensageira | 2024

A Mensageira | 2024

Um thriller sobre consciência política e racial

É do interesse da elite capitalista que a população esteja dopada, sem forças para enxergar além daquilo que é ordenado. São pessoas incapazes de pensar porque foram condicionadas a uma vida sistêmica, mercadológica, onde cada um exerce uma função específica. São relações monetárias de tempo, onde, para subsistir, é preciso silenciar, obedecer e trabalhar. A Mensageira, filme de Cláudio Marques, reflete esse contexto pela história de Íris (Clara Paixão), uma mulher negra que trabalha como oficial de justiça, usada como mais uma peça de opressão diante da inconsciência de sua própria ancestralidade.

A tarefa de Íris é executar mandados. Certa de que seu trabalho é importante e alinhado com a justiça, ela faz tudo conforme sua chefe (Evelin Buchegger) lhe pede. Na abertura do filme, ela precisa expropriar uma comunidade inteira. Protegida por policiais, ela entrega o documento e observa o trator que derruba as moradias. Seu discurso é sempre o de que está obedecendo ordens muito maiores do que qualquer compaixão que possa ter por aquelas pessoas que, assim como ela, são negras. É seu trabalho, aquilo que precisa fazer para sobreviver no campo de guerra que é a vida.

Marques é categórico na forma como conduz A Mensageira, fazendo que cada movimento, cada gesto (ou a ausência deles), tenha um sentido em prol da tensão que quer instaurar. Os personagens perambulam como marionetes, têm o olhar vago, imerso em uma face sem expressão, envoltos pelo melancólico preto e branco. É como se suas energias tivessem sido sugadas colocando-os em um estado de inércia. Os primeiríssimos planos no rosto de Íris são a evidência disso, assim como os enquadramentos que a oprimem em um canto, dando muito mais espaço ao cenário do que a atriz (o grandioso Fórum Ruy Barbosa engolindo a pequena oficial de justiça, uma engrenagem em todo motor estatal).

Por mais que possa se compadecer, Íris não o deve demonstrar. O que a desperta do sono é o encontro com Anderson (Hamilton Borges), um ativista pela causa racial. Quando está cumprindo um mandado de condução coercitiva contra ele, uma breve conversa no carro faz com que ela comece a compreender a estrutura da qual faz parte. Diferente daqueles que apenas cumprem as ordens, Anderson tem um espírito ativo, revoltado, por isso a atuação de Borges apresenta um tom mais alto do que as outras. Ele canta, ele sorri, ele questiona. É justamente sua impertinência proposital que faz Íris tomar consciência de que sua função era o braço de um sistema corrupto e racista.

A visão embaçada que Íris tinha da realidade, e que se materializa fisicamente com uma irritação nos olhos, vai aos poucos ganhando nitidez. Isso passa também pela culpa que sente depois que Anderson desaparece, logo após o deixar na delegacia. Tudo isso se conecta a um chamado ancestral que aparece para a personagem a partir de seus pesadelos, algo que o diretor explora por meio de cenas surrealistas.

Dados os acontecimentos de A Mensageira, os elementos começam a se tornar repetitivos. Como o filme já é vagaroso em sua ação, devido a inércia dos personagens, quando algumas cenas reforçam a mesma mensagem várias vezes, se torna cansativo. Os sonhos de Íris são fundamentais para o mistério que se estabelece, mas, ao decorrer da projeção, ganham contornos enfadonhos, como um delírio que claramente existe para referenciar O Processo, de Orson Welles. O problema é que já se havia instaurado positivamente o aspecto kafkiano do filme, logo não haveria necessidade de fazê-lo novamente.

O que a obra constroi na primeira metade, acaba ruindo na segunda. Quando as resoluções do mistério acontecem, a história se perde em um cansaço além do intencional, contrapondo a energia que deveria ser recuperada, já que Íris havia abandonado a inocência do começo. Mas nem tudo se perde. A Mensageira é um bom thriller e com algo importante a dizer. A inversão da função de mensageira de Íris, saindo da mera execução de ordens para ser a emissária de uma mensagem ancestral e política é eficiente. É possível sentir a opressão que as instituições do capitalismo colocam sobre os personagens, o que nos faz refletir sobre a banalidade de nossas vidas em nossas funções dentro do mecanismo social.

A Mensageira fez parte de nossa cobertura do 13º Olhar de Cinema. Acompanhe aqui.

Nota:

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