Tijolo por Tijolo | 2024

Tijolo por Tijolo | 2024

A construção de um sonho pela resiliência da mulher brasileira, negra e periférica.

A vida é dura feito rapadura

Criatura, a vida é doce, mas não é mole não

É pôr a mão na massa e começar de novo

Tijolo por tijolo eu vou quebrando pedra

Partindo do princípio que o primeiro passo é meu

Vou remover o barro, arregaçar as mangas

E retirar a lama que ficou pelo caminho

Pois quem anda com Deus jamais está sozinho

(Tijolo por Tijolo, Alcione)

A vida é dura feito rapadura, é doce, mas não é mole não. Alcione, a rainha do samba brasileiro, conhecedora das angústias e da capacidade de resiliência de seu povo brasileiro, o descreveu bem na canção que dá nome ao filme, Tijolo por Tijolo. O atributo de dar a volta por cima, de não desistir, de trabalhar e seguir, que representa tantas pessoas e famílias de nosso país, especialmente as periféricas, aqui é personificado na família de Cris Martins Ventura, moradora do Ibura, bairro relegado às margens e morros do Recife. Com seu esposo, seus três filhos e mais um a caminho, a protagonista se vê na urgência de construir uma nova casa, quando a sua começa a apresentar rachaduras com ameaças concretas de ruir. Ela precisa demolir a casa antiga e construir tudo do zero. Aproveitando todo material possível da demolição, acompanhamos  a trajetória da construção não apenas de um imóvel, mas da realização de um sonho: um lar que acolha a todos, do jeito que sempre foi pensado pela família. Atravessando esse sonho, o auge da pandemia causada pelo Covid-19, a gravidez de Cris e seu desejo de não mais ter filhos.

Victória Álvares e Quentin Delaroche, consagrados com o prêmio de Melhor Direção no 13º Olhar de Cinema, acompanharam, de dentro da casa de Cris, a saga da construção durante três anos. No longa, que também recebeu o prêmio de Melhor Montagem no festival curitibano, a câmera dos codiretores se intercala com a dos celulares de todos na casa. O celular de tela trincada de Cris é a principal ferramenta de trabalho não só do filme, mas da obra em si. É através dele que Cris produz vídeos previamente roteirizados para as redes sociais, trabalhando como influencer digital, e recebendo sua contraprestação dos aplicativos conforme o número de seguidores e visualizações. É com tais valores que ela vai construindo sua casa. Nos vídeos, além de memes, ela mostra a seus seguidores o andamento da obra, a chegada dos materiais comprados com tanto custo, a paralisação por falta de dinheiro, a rotina das mulheres na periferia, sua gravidez, além de mensagens de empoderamento feminino, autocuidado e direito reprodutivo.

Tijolo por Tijolo é repleto de vida. Cada tijolo, cada saco de cimento, é uma celebração, uma conquista a ser exaltada. Todos os membros da família, dos pais às crianças mais novas, andam ansiosas pelos cômodos por construir, só paredes levantadas em blocos, imaginando tudo pronto, descrevendo às câmeras detalhes do que será aquele lugar. Não há teto, não há piso, mas há muita criatividade e o desejo de que tudo dê certo. 

Se o jeito é assentar bloco à noite, assim o será, com o auxílio das lanternas  dos celulares e de ring light. As luzes artificiais, da casa e do Ibura ao fundo, servem como pontos focais aos diretores, que aproveitam a beleza urbana do espaço. O marido de Cris, Albert, aprendeu o ofício de pedreiro no YouTube. O projeto foi feito por eles mesmos, por meio de um aplicativo. As crianças querem ajudar. Cris faz o teste de qualidade, sentando-se sobre a parede erguida para se certificar de que nada vai cair. O chão coberto de poeira precisa ser varrido, a obra precisa de cuidado. O trabalho coletivo, a colaboração de cada mão da família, torna possível a concretização do sonho.

O que acontece em paralelo na vida de Cris é tão bonito e interessante quanto à construção da casa. Ela vai se tornando, cada vez mais, porta voz das mulheres daquela comunidade. Quando vai fazer bronzeamento na laje, recomenda a profissional habilitada, que pinta o corpo nu de suas clientes para obtenção do melhor resultado, e ressalta a importância do autocuidado. Organiza uma sessão de fotos para as mulheres, com direito à maquiagem, penteado e salto alto, para que todas se sintam lindas e empoderadas. É belíssimo e um tanto revigorante assisti-las, em todas as idades e corpos, em sua maioria mulheres pretas, se sentindo absolutamente plenas e bonitas, cada qual esbanjando sua beleza. O conceito de black power ali é por nós sentido com força.

Esperando o quarto filho, Cris luta para obter sua ligadura tubária, cuja realização depende diretamente do parto por cesárea. Ela se informa de seus direitos, informa outras mulheres, revela que, apesar de amar ser mãe, aquela foi uma gravidez indesejada que ela quis interromper, por não possuir quaisquer condições de ter outros filhos. Não há julgamentos. Seu desespero pelo procedimento vira nosso desespero, e mesmo durante o parto, ela não relaxa, questiona e se assegura de que sua laqueadura seja feita.

O dom do carisma, compartilhado por todos na família, se une à persistência e ao trabalho coletivo, para se encaixar perfeitamente na música de Alcione. Todos se ajudam, ninguém desiste, e se vier tempo ruim, o barro será removido. Ainda há espaço para a luta coletiva para além da família, com a participação ativa de Cris no MST, principalmente quando chuvas alagaram boa parte do Ibura, tragédia de tempos pandêmicos que sequer foi muito televisionada.

Cris é fruto de uma ancestralidade forte, representada no documentário pela potente sessão de fotos que ela faz com sua filha mais nova, com sua mãe, e com a menina que espera o nascimento na barriga. Todas reluzem num vestido amarelo, e são devidamente coroadas como rainhas que são daquele lugar, ali, nas paredes sem teto, no chão sem piso, belíssimas e radiantes, no sonho que vemos ser realizado diante de nossos olhos inevitavelmente marejados. Quando finalmente uma lâmpada se acende porque a eletricidade da casa foi finalizada, vibramos junto, respiramos aliviados. É, de fato, delicioso sair da sessão, com a beleza natural da imagem de pessoas simplesmente sendo, muito merecidamente e com muita luta, felizes.

Author

  • Natália Bocanera

    Na escassez de tempo, entre advogar e dedicar-se à sua dezena de felinos, escolheu o cinema como ponto de equilíbrio e formação individual do seu "eu", em permanente descoberta.

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