A Substância | 2024

A Substância | 2024

É muito mais difícil destruir o impalpável do que o real. 

Virginia Woolf

Que algumas lutas são cíclicas e parecem nunca se aproximar de um termo, é sabido. Quando a violação de direitos é expressa, palpável, fácil de identificar, o combate individual e coletivo é um caminho mais definido e mais fácil de ser perseguido.  Entretanto, quanto mais pesa a aparência que “causas estão ganhas” e de que a luta pode ser comedida, mais sofisticados se tornam os meios de opressão: tornam-se imperceptíveis e são inseridos em nossa rotina como naturais e inerentes ao modo de vida atual.

A jornalista Naomi Wolf vai escancarar essas amarras invisíveis em seu livro O Mito da Beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Seu estudo vai evidenciar como, ao longo de décadas, o estímulo ao culto à beleza e à juventude opera estruturalmente através dos mecanismos de poder industriais e sociais de forma a construir uma imagem de beleza inatingível que obsessivamente é buscada pelas mulheres. Essa busca vai fomentar a indústria farmacêutica, da medicina, da pornografia, dos comésticos, para afastar mulheres da emancipação conquistada a partir das lutas feministas e submetê-las ao consumo de produtos vendidos como milagrosos, cirurgias plásticas de risco, à doenças como a bulimia e a anorexia, à fome em prol da magreza, a um ideal de perfeição que vai favorecer sobremaneira a manutenção dos privilégios patriarcais.

Quanto mais poderosa e bem-sucedida a mulher, quanto maior sua independência financeira, mais requintada a tirania. O mito da beleza de Naomi Wolf vai gritar através da voz cinematográfica da diretora francesa Coralie Fargeat e dos corpos de Demi Moore e Margaret Qualley em A Substância, filme vencedor do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Cannes 2024 e que faz sua estreia nos cinemas brasileiros em 19 de setembro.

A Substância vai denunciar o mito através de personagens que seriam elas mesmas propagadoras inconscientes do ideal de beleza inexequível, e simultaneamente, as vítimas primeiras nesse ciclo: as estrelas de cinema. Elisabeth Sparkle (Demi Moore) é uma atriz cuja carreira é sintetizada pela estrela que ganha na calçada da fama, que é moldada especificamente para ela. No seu auge é altamente procurada, admirada e fotografada. A passagem do tempo vai fazer a marca sofrer rachaduras, ser pisoteada em meio ao esquecimento até que alguém derrube restos de alimento sobre ela. A repugnância desse gesto, o alimento industrializado caído sobre a estrela, é o resumo de como a Sparkle que passou dos 50 anos é vista pela indústria que a sustenta. Além de representar toda a repulsa que será altamente potencializada nesse body horror que monstrualiza o mito da beleza.

Não é preciso dizer que Demi Moore é uma mulher de beleza incontestável. Sua protagonista, que possui um programa fitness na TV, é detentora da fórmula de sucesso, exceto por uma exigida juventude que a todo momento lhe é colocada como uma carência escancarada. Essa mulher belíssima, financeiramente poderosa e independente, é violentada e oprimida por um sistema gerido por homens brancos (e idosos) que manipulam a imagem da beleza feminina aceitável como jovem, e nesse contexto, se é jovem até os 25 anos, idade auge da fertilidade. 

A ditadura desse sistema que esmaga e descarta Elisabeth Sparkle é transformada em espaços amplificados, sons exacerbados e sentidos distorcidos e muito acentuados por Coralie Fargeat, assim, a sensação de pesadelo é exponencial e sempre crescente. Há muitos e imensos corredores de uma limpeza e iluminação hospitalar que assustam e encurralam a personagem. Sua própria imagem a confina, seja nos espelhos, nos outdoors rasgados nas ruas, nesses mesmos corredores guarnecidos por pôsteres de vários momentos de sua carreira. Só há homens ao seu redor, quase sempre trazidos em primeiríssimos planos ou em planos detalhes que vão reforçar a aversão causada por esses devoradores e detentores do poder, que comem de forma repulsiva, cujo mastigar ouvimos muito alto, que tragam seus cigarros de modo desconfortavelmente audível. 

O que “a substância”, o líquido verde injetável propriamente dito, vai oferecer à Sparkle pode ser visto como uma versão representativa de todas as amarras do mito da beleza, aqui trazidas com um horror personificado que dá luz e escancara aquilo que outrora poderia ser invisível. O dito milagre aqui é a (re)produção de uma nova e melhor versão da mulher, e isso implica, para o atendimento dos anseios do mito, uma mulher mais jovem, Sue (Margaret Qualley). De modo brutal e sangrento, a coluna vertebral da mulher se abre para gerar o novo corpo, essa parte dela mesma que quer existir em prol do que impõe a estrutura industrial e social.

O que já soava nauseante, é elevado à máxima potência a partir da entrada da substância. A diretora cola sua câmera em agulhas que adentram veias, nos corpos furados sendo costurados, violentados, expostos, lesionados, em sofrimento. Traz também a repulsa aos corpos envelhecidos: o corpo envelhecido é a punição de Sue e Elisabeth por não obedecerem o equilíbrio exigido para que o experimento funcione de forma adequada. E talvez aqui é que a denúncia da diretora sofra um enfraquecimento. Se há a ideia do body horror como expositor do mito da beleza através do absurdo e do grotesco, usar da imagem do corpo envelhecido como algo monstruoso pode se mostrar uma contradição ou um “tiro no pé”. Além disso, a versão dessa mulher que mais sofre e se mostra em agonia e sofrimento é a de Demi Moore.

O ato final de A Substância, o horror em seu auge, vão acumular referências cinematográficas divertidas, de Carrie à 2001: uma odisseia no espaço. A busca pela perfeição, pela jovialidade, pela beleza inatingível pregada pelas próprias personagens, extrai tudo delas, restando apenas a estrela da calçada da fama. Como Naomi Wolf assevera em seu estudo, sempre que há algum avanço por parte das mulheres, algo surge para que suas energias lhe sejam sugadas e o progresso feminino seja paralisado. Se há liberdade para se ser o que quiser, há, em cada esquina, em cada farmácia, em cada publicidade, em cada rede social, a imagem de uma mulher cada vez mais magra e cada vez mais irrealmente perfeita. Essa imagem, geralmente, é branca e jovem. Que luta se sustenta quando tudo que se tem é minado por essas representações forjadas, quando não há mais fôlego e vigor para se manter no controle? É difícil, de fato, destruir o impalpável. 

Nota:

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