Banel & Adama | 2024

Banel & Adama | 2024

De que forma vivenciar o amor quando não há o básico para sobrevivência?

Como o amor e os sonhos podem se sustentar quando tudo desmorona ao redor? O motivo da ruína, aqui, é ao mesmo tempo causado pelo ser humano e está, até certo ponto, fora do controle de seu causador. Como perseguir um sonho quando o clima é quente demais e chove de menos? De que forma vivenciar o amor quando não há o básico para sobrevivência: quando falta água, falta comida e a morte paira no ar? Nada está no lugar, e a única atitude estimulada é encontrar culpados e salvadores imediatos. 

Em Banel & Adama, longa de estreia da diretora franco-senegalesa Ramata-Toulaye Sy, que esteve na Seleção Oficial do Festival de Cannes 2023 e foi a indicação do Senegal ao Oscar 2024, o casal-título tenta viver a promessa do amor perfeito longe das tradições e costumes impostos pela comunidade onde cresceram com suas famílias. A paixão entre eles, patente, visível e por isso mesmo vigiada por todos, briga por espaço quando, gradativamente, eles vão sendo induzidos a realizar ali os papéis esperados de um homem, cuja linhagem exige que ele se torne líder e produza herdeiros, e de uma mulher, que é impedida de ficar com o marido para dedicar-se aos deveres domésticos daquele seio.

O bonito amor partilhado entre Banel (Khady Mane) e Adama (Mamadou Diallo) é traduzido pela diretora com uma calmaria apaziguadora. A luz solar que paira entre eles, o campo onde pastoreiam o gado juntos, as águas tranquilas que submergem para se divertir, os vários planos-detalhes dos sorrisos, olhares e toques de mão que trocam nos dias e na rotina que passam um ao lado do outro, transmitindo a ideia de que há um lugar seguro e único entre eles, incompreendido pelo resto daquele microcosmo. 

Essa beleza romântica recebe um contraponto na atmosfera de desconfiança e estranheza que vai sendo inserida por Sy de modo premonitório. Banel ouve vozes que ignora, que a chamam de forma nervosa e insistente, e o belo verde da natureza que antes os rodeava dá lugar a um cinza desolador quando somos levados ao local que eles planejam construir seus sonhos: numa aldeia com casas soterradas, cavam sob a areia todos os dias para desenterrá-las, no que parece mais um campo de mineração do que um espaço agradável para a construção de um lar.

Apesar do sentimento sincero entre eles, Banel e Adama somente puderam se casar em razão da mesma tradição que tentam afrontar. Banel foi casada com o irmão de Adama, e com a morte precoce deste, o verdadeiro amado pode se unir à jovem viúva, ocasião em que assumiram o amor que já nutriam secretamente. Enquanto Banel é uma mulher determinada, que não se encaixa e se sente sugada pela comunidade, Adama, que antes parecia alinhado e compartilhando dos sonhos da esposa, vai se mostrando manipulável e oscilante entre a rebeldia e a obediência.

O peso do julgamento pela tomada de decisões que vão contra a tradição comunitária recai sobre ambos, mas vai reverberar especialmente na mulher. Quando Adama se recusa a assumir a liderança e as obrigações dela decorrentes para viver o amor, a seca, o calor e a morte  do gado passam a ser compreendidas, sob influência das vozes anciãs, como culpa sua e penalidade por sua indisciplina. Portanto, há a ideia de que enquanto esse lugar de líder natural não for assumido, o caos do clima não cessará. Adama, portanto, sai do sonho para aderir a um certo privilégio e proteção. 

O caminho de Banel é inverso. Como mulher que vive feliz ao lado do esposo e com ele persegue seus sonhos, ela já ocupa, naquele contexto, um lugar de privilégio, que lhe é retirado pela comunidade. Passa a ser, assim, coadjuvante de sua própria história, que precisa realizar aquilo que se espera dela e receber ordens sem questionar. Por sua autenticidade e recusa em simplesmente obedecer, ela é vigiada, julgada, observada a todo momento. Ela não quer ter filhos ou ser babá, ela não quer lavar roupa com outras mulheres, ela não quer ficar o dia todo aguardando pelo marido, mas sim, estar com ele. Essa oposição de Banel é operada pela diretora pelo isolamento da jovem, colocando a personagem nas sombras ou caminhando em sentido oposto dos demais. Para além dos sussurros que a perseguem quando há caos, os olhares devoradores das pessoas a fuzilam, potencializando ainda mais a estranheza e o incômodo de tudo.

Após os sinais de mau presságio que a diretora nos vai dando rumo à catástrofe, quando o calor e a seca encontram seu auge e mata-se o gado antes que ele morra de sede para que alguma carne seja aproveitada, o delírio e o suor de uma Banel inconformada pelo rompimento do sonho e do amor, que imagina chuva enquanto nada há a se fazer além de deitar e esperar, vão atingir seu ápice quando nem a tempestade de areia pode mais impedi-la, afinal, permanecer já é sufocante o suficiente. Experienciar Banel & Adama em meio aos tempos estranhos que estamos vivendo, quando no auge do inverno sofremos ondas de calor notoriamente anormais e a fumaça da queimada de florestas que impede que vejamos o céu azul, gera sensações bastante profundas. O pessimismo da diretora encontra beleza na poesia e no impacto de suas imagens, e a falta de esperança daquele amor dá lugar, nesses tempos,  à falta de esperança na  humanidade.

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