Pirinha | 2024

Pirinha | 2024

Uma jornada pelo subconsciente no processo de cura de traumas

O corpo pode ser capaz de guardar feridas, cuja origem a mente fez questão de esconder em lugares menos dolorosos do subconsciente. Traumas, principalmente sofridos na infância, geralmente vão ocupar esse espaço oculto, porém essa fuga não impede que eles ecoem através de sensações e sentimentos que não vão se explicar facilmente. Pirinha,  produção cabo-verdiana dirigida por Natasha Craveiro, representa o processo de autocura de uma jovem que começa a acessar a nascente de suas ansiedades e dores numa jornada através de seu subconsciente, ao mesmo tempo que navega por memórias afetivas e outras versões de seu antigo “eu” infantil como força e forma de restauração.

O momento de autodescoberta se dá como numa viagem onírica narrada pela própria jovem, que de forma poética é retratada pela diretora como uma caminhada de duas meninas, uma ainda criança, despreocupada e inocente, a outra um pouco mais velha e extremamente maculada por seus traumas, uma sendo fortaleza da outra, a inocência como guia daquela que se aprofunda em si. Elas transitam por entre campos ensolarados lidando com si mesmas e com as figuras folclóricas que outrora as amedrontavam na infância e que, nesse universo subconsciente, mostram segurança e conforto.

A diretora intercala essa jornada transportando a jovem personagem para o lugar de suas memórias com a avó, mudando bastante o tom do filme, abafando o som que parece mais distante e estranho, e tendo dificuldades para estabelecer os focos e estabilidade de sua câmera, o que faz esse segundo momento de Pirinha soar amador, destoante. Essas memórias parecem seletivas, desconectadas, o que é coerente com a ideia de que apenas uma parcela do que vivemos permanece. Assistimos avó e neta bebendo um chá doce, fazendo bolos, a avó costurando, cuidando da menina com remédios naturais e ouvindo música na cadeira de balanço.

Pirinha é um doce típico de Cabo Verde, que integra a infância, as memórias e o subconsciente dessa jovem que quer curar as dores de sua alma. O doce também vem como cura, assim como a ancestralidade e a segurança representadas pela avó. As feridas precisaram ser abertas para que a luz da restauração pudesse entrar, para que os motivos dos traumas fossem revelados, superados em prol da libertação da personagem. É preciso ser gentil com um filme como Pirinha. Os contrastes estilísticos e de qualidade que enfrenta decorrem muito do seu baixo orçamento, decorrente da carência de apoio ao Cinema de Cabo Verde. Portanto, com aquilo que tinha, Natasha Craveiro estabelece uma poesia imagética bonita e reflexiva nessa representação do processo de cura.

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