Anora | 2024
No esquema de submissão de classes, a felicidade é magia e sonho aos marginalizados
Quando Anora, filme de Sean Baker, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2024, já está encaminhando a dançarina erótica do título a um pacto de exclusividade com Ivan (Mark Eidelstein), um homem branco de 21 anos privilegiado por sua riqueza e status social, e por isso mesmo infantilizado, sentimos o sabor muito amargo de toda magia que vai ocorrer dali em diante. Anora, ou Ani (Mikey Madison), uma mulher que sobrevive exercendo a mais marginalizada das profissões, é inserida no mundo vibrante e sem limites das pessoas ricas, onde tudo é possível e alcançável. Se esse universo é a realidade de Ivan, é sonho para Ani – sonho esse que a ela jamais será permitido. É com esse amargor que o diretor vai novamente abordar relações de classe e o consumo de corpos pelo capital, num conto de princesas desolador, que vai elevar sua protagonista ao alto do precipício para, logo em seguida, lançá-la em queda livre, ato por ato.
Anora é, de fato, filme dono de magnetismo. A humanidade que Sean Baker consegue extrair mesmo de seus mais repreensíveis personagens é passível de nos recordar que o maior dos capangas de um oligarca russo é um trabalhador que teme perder seu emprego. Um trabalhador tal como Ani, imã e energia inconteste do filme, uma jovem que ousou desapegar da realidade, da qual ela se mostrava tão consciente, para sonhar que seria amada, rica e feliz. Esse fascínio, que muito advém do trabalho fenomenal de Madison, que abraça essa humanização tão característica do diretor com ferocidade, decorre de uma das vertentes do estudo de Baker aqui: a juventude e todas as suas possibilidades.
Ani e Ivan, quando isolados do abismo social que os separa, são apenas dois jovens em pulsação de desejos e impulsos, com energia suficiente para atendê-los. Há uma despreocupação, uma imprudência natural nos personagens que é fascinante. Baker vai colori-la e iluminá-la nos termos desta vida que pulsa neles. A diferença de classes e as posições de poder, porém, são onipresentes na medida em que essas possibilidades de viver a vida despretensiosamente que eles usufruem só são proporcionadas pelo capital – e Anora está a trabalho, tem um papel a desempenhar em prol dos desejos daquele que a contratou.
Há inúmeras personagens femininas em Anora, mas o diretor vai colocar sua protagonista, só, em afronta a homens que obedecem a uma lógica de masculinidade que é ridicularizada. Nenhum daqueles homens, entre Ivan e capangas, vai saber lidar com a intensidade de Ani. A figura de Ivan, principalmente, que busca se divertir usufruindo maravilhosamente de seus privilégios, é o grande representante da evidente proteção social que pesa sobre essa masculinidade exploradora, que contrata uma dançarina erótica para ser sua como um objeto a ser exibido e que atenda aos seus anseios sexuais (diga-se, que serão educados por Anora).
Mesmo Ivan é humanizado em sua imaturidade. É, porém, colocado no mesmo patamar de seus pais como um incontestável poderoso, sendo esse seu comportamento de vida, seu lugar social. A classe trabalhadora, composta por Anora e os capangas, é colocada no pólo oposto dessa luta de classes. Entretanto, Baker pratica uma equiparação de status entre a protagonista e as figuras masculinas que integram o operariado que nos parece desproporcional, e que retira dela o brilho que lhe justifica o nome e o título. Sendo Anora uma mulher, dançarina erótica e eventualmente prostituta, é evidente que na pirâmide social, ela ocupa a base das bases. No contexto fílmico, ainda, ela é vítima de todos esses homens, sejam eles operários ou privilegiados. Esse nivelamento é o primeiro dos elementos que esvazia o combate da personagem.
O filme usa do humor que advém do escárnio, colocando brutamontes aparentemente perigosos para serem subjugados por uma garota, para exacerbar essa exposição. É no humor, porém, que nos parece que limites são ultrapassados. Existe uma linha tênue entre a provocação do riso ácido vindo do absurdo das situações atrapalhadas desses homens ao redor de Anora e do riso vindo quando esses acontecimentos se tornam violência. O filme mantém um tom espirituoso quando Ani, em que pese toda sua luta, é, ela, rendida pelo uso da força física. Suas ferramentas de enfrentamento vão se esgotando. Do uso de sua força, ela é amarrada. Amarrada, ela grita. Por gritar, é amordaçada. Dessa forma, não pode se opor. Não há mais, ali, qualquer elemento humorístico restante, apenas violência e submissão. Ainda assim, a provocação do riso persiste. Vemos, novamente, toda a energia de luta de Anora se esvair.
Parece existir uma provocação de Sean Baker quanto à existência de uma submissão inevitável de pessoas ocupantes de classes inferiores aos detentores do poder. Pessoas marginalizadas, dançarinas eróticas, prostitutas, mulheres que ganham suas vidas em prol, em geral, do prazer masculino, não saem ganhando – é como se esse fosse o único caminho possível. Quando há um esforço para que a pirâmide social se mantenha como está, infeliz será aquele que tentar sair do espaço que lhe foi designado, como o fez Anora. Entretanto, o esvaziamento da luta da protagonista, que apenas deixa de se opor e começa a aceitar os acontecimentos, além de doloroso, ofende aquilo que ela guardava de mais precioso: sua insubmissão.
De mais a mais, o diretor impõe às suas personagens femininas sobressalentes um clima de rivalidade vazio e que soa despropositado. É quase como se fosse obrigatório que Anora, uma trabalhadora de casa noturna, devesse ter uma inimiga invejosa que vai desejar seu cliente – veja-se, o homem como causador de conflitos entre mulheres. É incômodo, ainda, que o temor de Ivan com relação a seus pais vai se resumir à figura vilanesca da mãe, ao passo que cabe ao pai rir da situação. Claro, é empoderador que essa família oligarca seja uma espécie de matriarcado, mas não quando a posição dessa líder familiar representa a própria opressão.
Anora faz um comentário de classes a partir de uma das mais marginalizadas das profissões, um romance jovem que já nasce comprado pelo poder. Acreditar que ele persistiria isento de julgamentos e choques de realidade é o sonho que Ani pagou caro por sonhar. Caiu, de fato, em queda livre – ou melhor, foi lançada pelo sistema de volta ao seu lugar. O choro desconsolado de Anora não a restaura, não devolve tudo aquilo que a vemos perder. Pelo contrário, faz questionar ainda mais a (im)pertinência do humor quando ele deixa de ser bem-vindo, bem como a humanização de homens violentos e opressores.
Muito ansioso pra ver esse, ainda mais depois desse texto que provoca tantas reflexões.