Não Chore, Borboleta | 2024

Não Chore, Borboleta | 2024

O desmoronamento de um casamento e a culpabilização da mulher

Seria demasiado complexo afirmar que exista, em nosso mundo, algum lugar onde mulheres não são vítimas das imposições culturais, sociais e psicológicas do patriarcado. É fato que mulheres compartilham, em cantos diferentes do globo, as mazelas do aprisionamento patriarcal, principalmente no que se refere ao casamento e ao envelhecimento. Há um permissivo e uma aceitação ao envelhecimento masculino, ao passo que mulheres precisam lutar contra as marcas naturais e belas da idade. Caso não o façam, serão, como sequela, responsabilizadas em muitas medidas. Se envelhecem, perdem suas belezas. Se a perdem, não são capazes de sustentar um casamento, forçando seus maridos a procurarem fora dele mulheres mais jovens e que atendam ao padrão de beleza exigido. Assim, seriam tais mulheres as culpadas pela infidelidade de seus maridos, cabendo a elas, portanto, realizar todo o necessário para o resgate da relação. É fundamentado nesses aprisionamentos que Não Chore, Borboleta, será construído.

A diretora Linh Duong faz esse estudo de gênero a partir do encontro de duas gerações, no seio de uma comunidade no Vietnã. Mãe e filha gradativamente vão percebendo o contexto de lar que conheciam desmoronar, decadência que vai se personificando através de uma infiltração no teto que somente as duas parecem notar. A mãe, ironicamente, trabalha como cerimonialista, preparando noivos para a marcha nupcial e organizando as festividades matrimoniais. A filha, é uma adolescente que planeja estudar na Europa, e mantém suas confidências com o vizinho, que é seu melhor amigo e com quem compartilha momentos despretensiosos do dia. Ainda que não falem sobre suas dores de forma direta, ambas sentem e compartilham o peso que é a permanência no lar na presença da figura do marido/pai, que se anuncia com pigarros, murmúrios e tossidas discretas, interferindo em qualquer harmonia que pudesse haver naquele espaço antes dele.

A ambientação da casa e as mudanças que vão acontecendo dentro dela são trabalhadas pela diretora de forma a acompanhar a dinâmica familiar e seu declínio. Em Não Chore, Borboleta, na medida em que as personagens vão se aproximando de seus limites, os ambientes se transformam de modo opressor, se opondo ao que há externamente. Enquanto mulheres se reúnem na rua para uma dança coletiva, a mãe-protagonista as acompanha de dentro da cozinha, enquanto faz os serviços domésticos. Se na casa do vizinho, a filha encontra leveza e momentos de tranquilidade, dentro da sua própria, não consegue permanecer mais que poucos segundos na mesa de jantar quando o pai está presente, não suportando assistir a mãe servi-lo. É simbólico que o pai interaja somente com os peixes do aquário que mantém – a própria casa é um aquário prestes a transbordar, que tudo faz para que as mulheres que ali habitam continuem aprisionadas. 

A figura paterna modula a dinâmica dos acontecimentos da trama – a traição, a presença silenciosa e ditatorial – mas nunca é imageticamente destacada por Linh Duong, que prefere conservá-lo nos cantos, quase fora de enquadramento, ou à distância nos ambientes. Mesmo quando somos inseridos num flashback, que rememora tempos supostamente felizes daquela família, durante a tenra idade da filha, suas palavras são poucas, são murmuradas e grosseiramente faladas. Vê-se, com tal abordagem, que qualquer felicidade existente nessa vida familiar nunca dependeu da figura do marido. Entretanto, as amarras sociais do casamento e dos julgamentos são tamanhas que, ainda que seja notória a desimportância do homem naquele contexto, a vida infeliz ao lado dele parece ainda uma melhor ideia do que o divórcio. As estratégias de aprisionamento feminino são tão eficazes que farão com que a esposa, em desespero, procure métodos ritualísticos notoriamente duvidosos de amarração do marido, e se submeta a procedimentos estéticos que lhe causam dor e sofrimento.

Não Chore, Borboleta usa de recursos que transitam por um certo surrealismo para concretizar os símbolos do desmoronamento do lar, cuja inevitável destruição virá por meio do lodo, da gosma que se forma da infiltração do teto para devorar e sugar a figura materna. Vai surgir do transbordamento do aquário e da inundação da casa, levando as mulheres daquele para um lugar fantasiosamente pacífico, longe do homem, mas ainda assim, derrotadas por ele. O filme, que é uma coprodução do Vietnã, Indonésia, Filipinas e Singapura, está na Competição Novos Diretores da 48ª Mostra, e foi vencedor do prêmio de melhor filme da Semana da Crítica do Festival de Veneza.

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