Pulp Fiction: um filme consciente de si
por Matheus Oliveira
Quentin Tarantino nunca foi à faculdade de Cinema. Assistir aos westerns de Sergio Leone e ler a prosa do romancista Elmore Leonard (Jackie Brown foi adaptado de um de seus romances), foi sua verdadeira educação. Durante o fim dos anos 80 e início dos 90, escreveu roteiros (Amor à Queima-Roupa, adaptado por Tony Scott, e Assassinos por Natureza, por Oliver Stone) e participou de pontas em alguns filmes independentes (Um Drink no Inferno, A Balada do Pistoleiro). Em 1992, estreou na direção com Cães de Aluguel, filme do subgênero heist, aclamado em seu lançamento e hoje cultuado pelos fãs do cineasta. Em seu primeiro trabalho, embora de forma mais comedida, Tarantino já brincaria com a linearidade narrativa e com as facetas inventivas do diálogo (amostra de sua maestria é a conversa inicial sobre a canção Like a Virgin da Madonna). Prodígio já com sua estreia, o cineasta, dois anos depois, teria aclamação mundial ao lançar Pulp Fiction (ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e o Oscar de Melhor Roteiro Original). Com esse longa, levaria a outro patamar sua escrita verborrágica (influenciou muitas produções nos anos seguintes, especialmente Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes, de Guy Ritchie, “vendida” como a resposta inglesa à obra de Tarantino) e criatividade em misturar cultura pop e cult (a dança entre Mia e Vincent sendo a mescla de uma cena semelhante presente em Bando à parte, de Jean-Luc Godard, e de outra na animação da Disney, Os Aristogatos).
Composto por três histórias entrelaçadas (“Vincent Vega e a Mulher de Marsellus Wallace”, “O Relógio Dourado” e “A Situação de Bonnie”), Pulp Fiction burla a narrativa clássica ao embaralhá-la e mudar a ordem de suas resoluções: a situação que abre o filme (apresentação do casal de assaltantes Bunny e Pumpkin, seguida do assalto) pertence à última das histórias; mas o mero ato de inseri-la no prólogo causa estranhamento (o assalto é realizado no mesmo recinto onde conversam Jules e Vincent, ou seja, o que se viu no início era na verdade o fim). Outro exemplo: o espectador, ao testemunhar o assassinato de Vincent no meio do enredo, acha no mínimo esquisito vê-lo sair porta afora, ileso e relaxado, no fim da projeção: é como se o cineasta, espécie de diretor-deus, intervisse em seu destino, ressuscitando-o. Mauro Baptista, autor de O Cinema de Quentin Tarantino, chama-o de morto-vivo, e o compara ao cadáver protagonista de Crepúsculo dos Deuses (Billy Wilder, 1950), que conta a sua história de vida após morrer numa piscina. Nesse sentido, a não-linearidade confere a Pulp Fiction um aspecto metafísico (vide as constantes referências teológicas no longa, como o versículo do livro de Ezequiel citado por Jules Winfield).
Também Pulp Fiction subverte ao desobedecer, no classicismo narrativo, as relações entre causa e efeito. Em diversos momentos, uma situação a princípio convencional ganha um desfecho incomum: posteriormente à execução de Brett por Jules e Vincent, um homem armado sai do banheiro e esvazia o revólver neles, mas nenhuma bala os acerta; a dupla logo revida, e o derruba. Minutos depois, cada um interpreta a seu modo o ocorrido, com Jules acreditando ter presenciado um milagre e Vincent, mera obra do acaso (outra referência teológica).
Já distantes da cena do crime e na estrada a caminho de um local seguro, a dupla continua o debate sobre o incidente “metafísico”. Vincent, ao perguntar a Marvin sua opinião a respeito do assunto, sem querer, dispara um tiro contra o seu rosto. Em um típico filme de crime, é possível imaginar que as situações não se desenrolariam dessa forma: os bandidos possivelmente sairiam com seu informante (não cometeriam nenhuma fatalidade contra ele) e com a maleta e, após longo perrengue, a entregariam ao chefe; a maleta – e seu conteúdo – teriam importância maior além de servir unicamente como MacGuffin (não interessa o que tem dentro dela), pois seria a razão dramática em si. Em uma história convencional do gênero, talvez um evento inesperado (como o das balas desviadas) nem apareceria, já que o roteirista, ao ter que subordina-lo à tradicional lógica de causa e efeito, nem se daria ao trabalho de escrever algo tão “incontrolável”. Já em Pulp Fiction, a mesma lógica é subordinada ao acaso (o evento inesperado muda o curso de um enredo que se construía sob um aspecto até então típico, reconhecível para um público acostumado às convenções do gênero de crime).
Enciclopédico é o conhecimento de Quentin Tarantino sobre Cinema. Por ter assistido a muitos filmes (antes de se tornar cineasta, ele trabalhou em uma videolocadora), Tarantino reúne, em suas próprias obras, histórias arquetípicas retiradas das que consumiu (cultura pop, cinema exploitation, western e a filmografia inicial de Godard) e as bate no liquidificador. O momento de Pulp Fiction que melhor condensa tal mistura é o da cena no restaurante Jack Rabbit’s Slim: com um clima vintage, com pôsteres de filmes antigos e com garçons e garçonetes vestidos de grandes personalidades da cultura popular (Marilyn Monroe, Rick Nelson, James Dean), o local é um museu de cera vivo. A cena é uma piscadela ao espectador: o cineasta diz que o que se passa em tela é de fato um filme e que os “bonecos de cera”, enquanto ícones imortalizados pela “veneração cinefílica”, são conscientes de suas próprias deidades. Ao chegar no recinto, Vincent observa a tudo e a todos, como se estivesse deslumbrado com os “ícones”. A câmera vagueia com folga pelo ambiente e Tarantino provoca o mesmo deslumbramento no espectador, quando deliberadamente “perde” de vista Mia Wallace deles e de Vincent (como alguém que, enfeitiçado pelas atrações de um museu, se perde do ou da acompanhante).
Ao fim da sequência, com a célebre dança acontecendo (John Travolta retorna a uma figura encerada sua dos anos 70: Tony Manero, de Os Embalos de Sábado à Noite), quem adentra ao pórtico dos personagens imortais é Vincent Vega e Mia Wallace, observados desta vez por aqueles anteriormente observadores. O casal de personagens, segundo Mauro Baptista, “têm um visual estilizado e inspirado na cultura de massas”, com Mia sendo uma mistura de Louise Brooks (célebre atriz dos anos 20) com Anna Karina (musa da primeira fase de Jean-Luc Godard) e Vincent, com seu terno preto e blusa branca, lembrando Os Irmãos Cara de Pau (John Landis, 1980). Mais do que mero cinéfilo sedento por referências, Tarantino, consciente do poder iconográfico da sétima arte – e do seu próprio em torná-la como tal -, talvez já soubesse que concebia personagens imortais.
Tarantino pertence a um período multicultural denominado de pós-modernismo, cuja autorreferência cultural era a ordem do dia: com o advento dos videocassetes, o espectador passou a ser mais consciente do que consumia. Por cineastas e espectadores terem ficado mais próximos um do outro através da tecnologia (os canais por assinatura permitiam que se assistisse a dezenas de filmes no sofá de casa), a ficção como tal aparecia mais como uma segunda realidade do que como um mundo à parte, mera representação da “realidade principal”. Tal como Randy, o funcionário da videolocadora em Pânico (Wes Craven, 1996), também o espectador pós-moderno tem consciência de sua própria cinefilia, do universo ficcional que consome: sua visão passou a ser mais cínica, autoconsciente. Nesse sentido, o longa de terror de Craven mostrou algo inovador: que as outras obras do mesmo gênero (Halloween, A Hora do Pesadelo) coexistiam em seus universos ficcionais até então isolados; com Randy, o cinéfilo que prevê a trama do filme no qual ele mesmo atua, sendo o profeta da metalinguagem.
Também o é Quentin Tarantino, cuja profissão era a mesma de Randy. Em sua formação autodidata, Tarantino absorveu toda uma cultura cinematográfica que o transformou em uma filmoteca ambulante. Ele é, antes de cineasta, um cinéfilo compulsivo que não consegue viver longe dos filmes alheios, nem dos seus. Aliás, nestes, como se não bastasse só dirigi-los, ele próprio aparece como ator. Em Cães de Aluguel, leva um tiro na cabeça. Em Django Livre, é explodido por dinamites. Já em Pulp Fiction, não morre, mas é significativa – e simbólica – a sua aparição: interpreta Jimmy, amigo de Jules, que surge no momento em que este e Vincent se desfazem dos vestígios do incidente envolvendo Marvin, e usam a sua casa para fazer a limpa geral. A casa de Jimmy é um ponto seguro, e nela a complicação se resolve (Wolf, a mando de Marsellus Wallace, é chamado para reparar a bagunça feita pela dupla). Como se nota, a ajuda de Jimmy/Quentin é indireta: o cineasta, no corpo de uma primeira criação (Jimmy), através de uma segunda (Marsellus), invoca uma terceira (Wolf) para solucionar um problema que surgiu via ex-machina através dele próprio. Tarantino puxa de seu repertório uma situação de superfície clássica (um faz-tudo da máfia resolvendo um problema prático) mas com um fundo farsesco (a situação clássica ocasionada por um evento metafísico e misterioso, assim, ilógico).
Segundo Renato Luiz Pucci Jr., pesquisador de cinema, “os filmes pós-modernos são híbridos de ilusionismo clássico e distanciamento modernista”. Pulp Fiction não se encaixaria numa definição melhor. Ele funciona principalmente por ser embaralhado: a estrutura misturada é a sua força dramática e estilística. O avançar da projeção intui um nó a ser desatado: a cada minuto, mais clara fica a ordem dos eventos. Ao mesmo tempo, faz menos sentido tentar ordená-los. Pois a finalidade não está no ato de tentar organizar, mas no de contemplar a confusão entre passado, presente e futuro. O momento em que Jules e Vincent trocam de roupa é ao mesmo tempo lógico (os ternos estavam sujos de sangue, daí a razão de serem descartados) e esclarecedor (descobrimos o porquê de eles aparecerem no bar vestidos como se estivessem de férias na primeira historieta).
Na cena final/inicial no restaurante, Jules e Vincent nem parecem mais bandidos, só vadios alheios à representação, aproveitando os minutos finais que lhes restam antes dos créditos subirem. “Vamos entrar no personagem”, diz Jules Winfield a seu parceiro, lá no início, minutos antes de adentrar o apartamento de Brett e matá-lo. No final, quando toca a música de encerramento (Surf Rider, de The Lively Ones), antes da dupla sair porta afora do restaurante, Vince diz em tom farsesco ao parceiro: “Acho que é hora de sairmos”. A dupla volta a ser só Samuel L. Jackson e John Travolta antes do filme terminar. Tarantino revela a “farsa”.