O Quarto ao Lado | 2024

O Quarto ao Lado | 2024

A melancolia não precisa ser retratada em preto e branco

Pedro Almodóvar finalmente debuta com seu primeiro longa-metragem totalmente em língua inglesa, sem antes ensaiar com dois médias-metragens também realizados em inglês, os A Voz Humana (2020) e Estranha Forma de Vida (2023).  O Quarto ao Lado é Almodóvar mergulhando em (quem diria) Ingmar Bergman. Sensível e melancólico, faz talvez o filme mais sóbrio de sua carreira e que, de certa maneira, se conecta com o nostálgico Dor e Glória (2019), encarando temas como a morte, com uma maturidade desconcertante. 

Percorremos, em seus 107 minutos, uma caminhada dolorosa e ao mesmo tempo reconfortante, que medita sobre a morte, sobre escolhas, sobre se deixar partir. Almodóvar abraça um espírito pessimista, que está impregnado em O Quarto ao Lado do início ao fim. O diretor usa de um lirismo pouco peculiar, e se aproxima mais da narrativa de Bergman, autor que conhecidamente lida com perdas e vazios existenciais em seus filmes. As duas protagonistas de Almodóvar se encontram quando, por acaso, a escritora Ingrid (Julianne Moore) ouve falar do grave estado de saúde de Martha (Tilda Swinton) em uma fila de autógrafos do lançamento de seu livro que fala sobre a dificuldade de lidar com a morte. 

Com quadros impecáveis e harmônicos, intensamente pincelados de vermelho e verde, as duas amigas distantes se reencontram e estabelecem uma nova relação. Martha, diagnosticada com um câncer em fase avançada, busca desesperadamente alguém que lhe acompanhe em seus últimos dias de vida, depois de tomar a decisão de findá-la quando achar mais adequado. Após algumas tentativas frustradas, acha em Ingrid um olhar atento, um pouco amedrontado, mas que empatiza e decide enfrentar seu trauma se aproximando do que mais teme. 

Como em Persona (1966), temos duas mulheres protagonistas, onde uma se torna a cuidadora quando a outra está enferma, em uma relação de proximidade quase simbiótica. Em Gritos e Sussurros (1972) Bergman coloca sua protagonista de frente com a própria dor, definhando em profunda agonia e solidão com a ideia de uma morte iminente pelo câncer. Em O Quarto ao Lado todos esses aspectos estão pincelados em Martha e em Ingrid. Martha ainda revela uma conturbada relação com sua filha, abre uma enorme reflexão sobre o amor e a maternidade, evidencia a distância dolorosa e falta de intimidade e carinho entre elas, remetendo bastante a Sonata de Outono (1978), de Bergman.

Ingrid é uma mulher que demonstra um enorme espírito acolhedor e o olhar de Julianne Moore ilumina essa personagem que, mesmo demonstrando dificuldade em lidar com a morte, jamais julga ou se alarma com relação à decisão de Martha. O tempo que passam juntas, seja no início do reencontro, ou quando vão embarcar em uma convivência mais intensa na casa que Martha escolhe para viver seus últimos dias, são de conversas sobre entendimento, aceitação e nostalgia. Mesmo sabendo que a amiga não se sente completamente pronta para “abandonar a festa” e ainda lhe sobra vontade de estar nesse mundo, Ingrid serve como uma intermediadora dessa passagem com os pés no chão, consciente de que o inevitável fim da jornada de Martha chegará, então que chegasse da forma que ela quiser. 

Para falar de morte, liberdade e acolhimento, dessa vez Almodóvar não recorre ao exagerado melodrama e produz uma obra intensa, mas que se contém nos excessos que lhe são característicos. Esteticamente não há dúvidas de que estamos em um de seus filmes, mas os objetos, ornamentos e as cores fortes são usados como pontos de iluminação que adornam e realçam uma tela mais escura e sombria. Com ambientes rodeados de arte, o diretor nos coloca em um universo melancólico e fúnebre, como se a mis-en-scene quisesse suavizar (mas nem tanto) a sensação da morte. Na parede da casa onde Martha aguarda a morte há um quadro do famoso pintor Edward Hopper, conhecido por retratar pessoas contemplando paisagens ou horizontes. Os quadros do pintor americano, apesar de retratarem momentos de quietude, passam uma sensação de solidão e de reflexão nostálgica, conversando muito com os dilemas de Martha. Há uma cena na qual as amigas se deitam lado a lado na espreguiçadeira da varanda com vista para a natureza, emulando um de seus quadros. 

O Quarto ao Lado mostra uma nova faceta de Almodóvar como diretor, pisando em um terreno desconhecido com esplendor, se desfazendo de algumas convenções de estilo sem perder sua essência e identidade. O diretor espanhol nunca fugiu de abordar temas polêmicos e não foi dessa vez que renunciou a tal costume, logo, identificar traços de Bergman em seu novo filme, não faz dele menos almodovariano. O longa trata a eutanásia como uma escolha libertária, com respeito e sem parecer pedante; pincela idéias sobre crise política mundial e climática, e maternidade. Constrói personagens bem estruturados, e, se o visual do filme perde na vivacidade que somos acostumados, ganha em harmonia e equilíbrio de um realizador que sabe muito bem o que está fazendo.

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  • Jornalista carioca, editora e crítica de cinema. Tem foco de interesse e pesquisa em cinema de gênero e feito por mulheres.

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