Salão de Baile | 2023
Suba no salto e sinta-se em casa
Salão de Baile é um documentário dirigido por Juru e Vitã que mostra as nuances e a força da Cena Ballroom, um movimento estrangeiro, mas que existe, com bastante vida, nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro. Uma cultura nova-iorquina, mas que foi abraçada por uma enorme comunidade de mulheres trans, majoritariamente negra e que simboliza diversos níveis de representatividade dentro do universo LGBTQIAPN+ em um único movimento. Mesmo com a enorme maioria de seus termos sendo pronunciados na língua inglesa, parece que as “balls” (abreviação dada aos eventos Ballroom) se encaixam perfeitamente aqui no Brasil.
Como uma atividade essencialmente libertária, os bailes esbanjam glamour e ousadia das participantes. Entendemos, logo de início, que esses eventos não são um desfile de moda, são uma competição. As balls são batalhas, disputas diretas ao vivo, com um corpo de jurades que vai decidir quem se saiu melhor. Mas, longe de se limitar a isso, todo o universo Ballroom trata-se de uma comunidade, acolhedora em sua essência, por vezes também hostil em decorrência de suas rigorosas cobranças técnicas e estéticas.
Salão de Baile é montado a partir da reunião de “houses” (as casas, que são como famílias dentro no universo Ballroom) convidadas pela House of Alafia para participarem de uma ball produzida especialmente para as filmagens do documentário. As houses são compostas por uma “mother” que acolhe um seleto grupo que vai compor um coletivo. Existem diversas houses e nelas há um senso enorme de comunidade, cuidado e apoio, como em uma relação familiar.
Comparado a um mundo paralelo, como o universo invertido de “Stranger Things” por uma das entrevistadas, ela se refere as balls com uma conotação de um local que cura e que atende situações emergenciais ao dizer que “a Ballroom é uma ‘UPA’”, fazendo alusão às Unidades de Pronto Atendimento do Rio.
A tradição começou em 1967, depois de uma polêmica gerada em um desfile de moda trans em Nova Iorque, onde todo ano só ganhavam mulheres brancas, fato questionado pela competidora Crystal LaBeija – drag queen e mulher trans que fundou a House of LaBeija, dando início ao conceito das houses dentro da cultura de baile. Ela ajudou a consolidar o movimento como um mecanismo de resistência anti-racista e de fortalecimento a mulheres trans negras. Já no Brasil, começou em 2015 com o baile “Conferência das Bruxas” em Niterói, local que concentra maior força do movimento e onde foi marcada a ball para as filmagens do longa.
Salão de Baile mostra depoimentos das juradas, onde vemos comentários como “é sobre autocuidado, autoestima e saúde”, e outros que mostram intolerância com uma acne, por exemplo, como sinal de descuido, evidenciando o extremo rigor de algumas categorias, como a “face”, por exemplo. Duas facetas antagonistas que fazem parte da cena Ballroom.
O longa usa dinamismo na montagem, que mescla as falas das mulheres com os momentos performáticos das balls. Muitos depoimentos trazem um teor emocional de histórias bastante pessoais, ilustrados com um vigor estético incrível desse universo. Ser assumidamente queer e negro no Brasil é lidar com uma realidade de preconceito, violências, estigmas, luta e resistência: “no Brasil, antes de gênero tá a raça, você é travesti, mas antes você é preto”. A alma do documentário está justamente nessa junção, que soa harmônica para expressar o complexo mundo dos bailes e de pessoas que se cobram e se fortalecem. É ressaltada a valorização da beleza negra, a desmistificação dos padrões.
Nas performances, as participantes são exaltadas, o corpo gordo, o corpo magro, modificado ou natural, baixa, alta, curvilíneas ou não, todas se sentem aceitas, se sentem pertencentes a um grupo que mesmo não as classificando em uma competição específica, vai incentivar para que voltem em condições de competir no futuro.
Uma das categorias que parece ter mais adeptos é a Voguing, uma dança inspirada nas poses de modelos da revista Vogue. Trazendo a moda das “Madonnas” loiras, contrastando com a cultura preta, mas falando direto à cultura das divas queer. As houses e balls trazem também a conscientização das ancestralidades africanas do movimento, os costumes, o funk, as práticas ritualísticas religiosas, tudo é respeitado, incorporado, transformado em performance e em vivência. Uma das entrevistadas explica que esse elo ancestral existe, mas a Ballroom vai além disso e, no Brasil, ele se torna algo único, com uma nova cultura e com novas categorias, como as de “Passinho” e “Bate Koo”.
Hoje, é possível encontrar referências à cultura Ballroom em produções como a série Pose, de Ryan Murphy, e o reality de sucesso RuPaul’s Drag Race. Salão de Baile além de expandir o conhecimento da cultura de baile e mostrar a beleza desse movimento que foi não só apropriado, mas reinventado aqui no Brasil, mostra também as nuances menos glamourosas, através das histórias particulares nem sempre tão brilhantes. Juru e Vitã, que são pessoas pertencentes a comunidade Ballroom no Brasil, realizam um filme que abre o diálogo com um movimento que entende que corpos trans são essencialmente corpos não binários e abraça sua própria realidade de forma ampla, contra as regras convencionais do Ballroom pelo mundo.
Esse filme foi assistido durante a cobertura da 26ª edição do Festival do Rio, confira mais aqui
Esse filme foi assistido durante a cobertura da 48ª edição da Mostra de SP, confira mais aqui
Essa crítica faz parte da nossa cobertura do CPH:DOX 2024, leia mais aqui