Kasa Branca | 2024

Kasa Branca | 2024

O cinema afetivo pode ser a melhor arma contra um estigma social e estético no cinema das periferias no Brasil

Falar da vida de pessoas negras que moram e enfrentam dificuldades na periferia do Rio de Janeiro não é novidade em filmes brasileiros. No entanto, é raro quando o diretor opta por uma abordagem diferente, que não exalte a violência como única forma de sobrevivência na favela ou em bairros pobres da cidade. Kasa Branca, primeiro longa-metragem de Luciano Vidigal – ator, diretor e roteirista criado na favela do Vidigal, traz ares frescos e muita descontração para falar de coisa séria. Vidigal consegue ser empático e parece ter intimidade com os personagens que cria, quando todos eles esbanjam ternura, mesmo envoltos em uma dura realidade.

Kasa Branca conta a história de Dé (Big Jaum), um adolescente negro da periferia da Chatuba, no Rio de Janeiro, que recebe a notícia de que sua avó, Dona Almerinda (Teca Pereira), está com Alzheimer, em fase terminal. O jovem mora sozinho com a avó e não recebe boas notícias da agente de saúde do SUS que os visita regularmente para checar seu estado. Desempregado e com dificuldades financeiras, até mesmo para comprar os medicamentos básicos para Almerinda, Dé conta com a ajuda de seus dois melhores amigos, Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco), para enfrentar as dificuldades e passar o tempo que resta junto de sua avó da melhor forma que puder.

A grandiosidade do longa de Vidigal está na subversão da imagem dentro da periferia, usando uma câmera contemplativa, que fotografa de maneira singela e poética os cantos escondidos nas ruas das comunidades mais pobres. Usa travellings e ângulos cheios de profundidade de campo para elevar a beleza das altas vistas do topo do morro. Por vezes também mantém planos fixos, como o de Dé e sua avó na cadeira de rodas em uma passarela em cima da estação de trem, parados observando o intenso e fugaz movimento nos trilhos. 

No conhecido Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, popularizou-se o uso agressivo da câmera na mão em filmagens dentro da favela, uma câmera afobada, que está sempre junto dos personagens, quase que em “estado crítico”, como a situação que quer mostrar. Kasa Branca é um filme sobre pessoas pretas e faveladas, mas que opta por registrar a beleza que está dentro daqueles que vivem à margem, e que são comumente julgados por sua cor e pelo local onde moram. A fotografia evidencia o rumo que o filme quer seguir, assim como na obra de Meirelles. O longa de Vidigal se aproxima muito mais do excelente O Dia em Que Te Conheci (2024), de André Novais Oliveira, quando escolhe o lado do riso para tratar a dor.

Criado com uma distância dolorosa de seu pai, interpretado por Babu Santana, Dé, em dificuldade, tenta se reaproximar dele para tentar algum tipo de ajuda com os cuidados de sua avó. Essa relação que vai sendo contada pelas bordas do filme, com calma, mas que no fim tem um desfecho cheio de franqueza, com um gosto saboroso de “realidade”. A direção alinha seu discurso de forma direta, sem excesso de drama, com personagens que aprendem a resolver seus problemas e não abrem espaço para se fazerem de vítimas, pois não se enxergam como tal.

Paralelamente a saga de Dé, que decide percorrer junto da avó e de seus amigos, os locais que Almerinda mais apreciava durante a vida, em uma rota nostálgica, Kasa Branca nos apresenta a vida cotidiana desses três amigos, seus dilemas amorosos, seus “esquemas” para se virar e seu enorme senso de comunidade. O elenco ainda inclui Gi Fernandes (atriz em “Mania de Você” e na série “Os Outros”), que faz sua estreia em longas-metragens, além de Roberta Rodrigues, Otávio Muller e Guti Fraga.  Vidigal não deixa de salientar que as ruas são perigosas e que os policiais são violentos e dão medo, mas a marca que seu filme deixa no espectador, são as brincadeiras, as zoações e o enorme carinho entre os personagens que se apoiam, têm orgulho de quem são e de como são; sem falar da relação de extremo afeto de Dé com Dona Almerinda. Kasa Braca é cinema negro da cabeça aos pés, da direção ao elenco, mostrando um lado sensível e afetivo das dificuldades das pessoas pretas dentro da periferia, sem banho de sangue, com muita consciência de classe e cor.

Nota

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  • Jornalista carioca, editora e crítica de cinema. Tem foco de interesse e pesquisa em cinema de gênero e feito por mulheres.

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