Ainda Estou Aqui | 2024
A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida. Uma memória não se acumula sobre a outra, mas ao lado. A memória recente não é resgatada antes da milésima. Elas se embaralham.
Trecho de Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva
20 mil pessoas torturadas. A ditadura militar, que arrasou terras brasileiras de 1964 a 1985 e imbuiu o fascismo nas mentalidades, estrategicamente atuou em dupla opressão: sufocou a democracia e, mais diretamente, violentou e ceifou vidas humanas, famílias e estruturas de vida. Essa atuação nem sempre foi explícita. O regime atuou pelo silêncio, pela ocultação, de forma a manter a aparência de normalidade enquanto a violência se dava de forma irrastreável. Rubens Paiva, ex-deputado, é uma vítima bastante conhecida do regime fascista, que desapareceu em 1971 após ser abordado por militares à paisana dentro de sua própria casa, levado para prestar um depoimento sem jamais retornar. Sua morte só foi reconhecida 40 anos depois, pelas investigações da Comissão Nacional da Verdade, e também pela luta descomunal de sua esposa, Eunice. Ainda Estou Aqui, novo filme de Walter Salles premiado no Festival de Veneza deste ano (o primeiro filme a conquistar um prêmio na seleção oficial desde 1981) e que vem criando expectativas palpáveis de indicações ao Oscar, é uma adaptação do livro de mesmo nome de autoria de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado, que traz as memórias do escritor relativamente aos acontecimentos que permearam o sumiço de seu pai.
Essa lógica do silenciamento que operou a ditadura vai impulsionar o trabalho de Salles, que o manifesta nas dores entranhadas no seio daquela família em agonia constante, cuja expressão e externalização é reprimida pelo contexto fascista. Sob um ponto de vista diverso do trazido pela literatura, Ainda Estou Aqui será guiado não pelas memórias de Marcelo (Guilherme Silveira na infância, Antonio Saboia na vida adulta), mas pela luta de quem de fato conduziu a família a partir do desaparecimento de Rubens (Selton Mello): Eunice Paiva (Fernanda Torres), mãe de 5, dona de casa, que precisa redescobrir formas de viver e seguir em frente, sem deixar de persistir na busca pelo marido.
A partir dessa lógica, o diretor não vai emocionar pela intensidade que extravasa, mas pelo oposto. O método vai se refletir nas ausências, no comedimento, nos espaços vazios. Para alcançá-lo, Ainda Estou Aqui vai primeiramente nos inserir nas presenças, na vida cuja falta perceberemos depois. Pulsa a existência dos Paiva, vibram os acontecimentos na casa da família à beira-mar, que recebe a iluminação de afetuosos raios solares. A casa também é personagem, passamos a conhecer seus espaços com intimidade, lugar que abriga os filhos Marcelo, Vera, Eliana, Ana Lúcia e Maria Beatriz, seus amigos na parada depois da praia, o cachorrinho Pimpão, os amigos dos pais em festas regadas à muita música brasileira setentista, a empregada que junto de Eunice faz a roda girar. Esse mesmo espaço-lar receberá os militares (mesmo eles usufruirão do acolhimento da casa) que modificarão a lógica de sua representação, fazendo a transição do repleto para o vazio, do presente para o ausente, da vida que se expressa para a vida que se encolhe.
Salles sabe bem como trabalhar as estruturas do cinema clássico, e usa das convencionalidades para criar uma narrativa certeira, que manuseia nossas emoções como uma crescente de forma elegante, que não se restringe a um ou outro momento, mas se distribui por todo longa. Aqui entra o acontecimento que é Fernanda Torres como Eunice, que abraça a proposta do silenciamento para ser ela mesma a força que emana do esforço de permanecer serena, constante e comedida diante de um quase-desmoronamento de tudo que ela conhece como vida. A personagem vê o marido sair pela porta de casa, vestido elegantemente de terno e gravata, com seu próprio carro, para acompanhar os militares, como se soubesse exatamente o que estava por vir. Depois, ela mesma é submetida, juntamente de sua filha de 15 anos, à desumanidade dos interrogatórios ocultos que o regime praticava. Da percepção do risco, não há surto e desespero, há estratégia e medo. Eunice mantém a voz contida, baixa, a racionalidade de suas ações, como se pisando em ovos a todo momento. Em que pese a inimaginável dor, o luto que não consegue ser devidamente vivido, a personagem é muito consciente que um deslize seu leva toda a família para a queda. Esse é o tipo de responsabilidade que Fernanda Torres faz transparecer.
A memória que se luta para preservar em Ainda Estou Aqui não é a de uma única pessoa. Ela alcança dois pólos fundamentais quando se trata de relembrar o regime ditatorial: a memória como exercício de aprendizado e resistência, e a recordação individual daqueles que sofreram diretamente as desumanidades do fascismo. A memória aqui não é a de uma única pessoa, mas a dos espaços que vão perdendo vitalidade, assim como as vidas que abrigou. A memória, por fim, é mutável, se revigora, porque é preciso seguir em frente. Outrossim, a carne torna as lembranças falhas. O ser humano se esquece, envelhece, sofre de doenças que comprometem aquilo que de mais valioso guardamos de nossa existência, que é a reminiscência de nossa trajetória e das pessoas que amamos. A Super 8 que é usada pela família para gravar os momentos felizes, as fotografias, e até as notícias de jornal aqui são recursos preciosíssimos que servirão de auxílio para o resgate daquilo que o corpo, por si só, não é capaz de manter. Sutilmente, Walter Salles vai nos recordar também a maravilha que é seu ofício como instrumento que vai acalentar nosso desesperado medo de esquecer e ser esquecido. É o medo de Dora, de Central do Brasil, em sua carta para Josué, “Tenho saudade do meu pai, tenho saudade de tudo.” É a carta que Vera vai mandar para sua família, nos mesmos dizeres: “Tenho saudade de tudo.”