Ao Contrário | 2024

Ao Contrário | 2024

O casamento é uma convenção social e jurídica cuja ideia de constância ou imutabilidade é bastante utópica. Os contraentes não são os mesmos durante toda a vida, tampouco as situações, e a modulação das relações é necessária para que o ajuste se sustente no tempo. É ilusório, ainda, pensar que o casamento é uma instituição aplicável a todas as relações, muito embora seja a forma mais segura delas em razão da proteção legal conferida tanto à sua constituição como ao seu rompimento. Sendo fato que a imutabilidade do casamento é uma farsa quando não há um esforço conjunto em prol das mudanças naturais da vida, sua ruptura deveria ser muito menos polêmica ou dificultosa do que geralmente o é. Mas isso também é utopia. Não só perante a sociedade, que tem dificuldades de aceitar o divórcio, mas principalmente, com relação aos contraentes em si. A intimidade adquirida entre pessoas que se casam não será alcançada em nenhum outro patamar de relação social. 

Muito embora possamos ser pessoas diferentes em contextos sociais diferentes, dentro de nossas casas somos os seres primeiros de nossa personalidade. Ao Contrário, longa de Jonas Trueba vencedor do prêmio Label Europa Cinemas da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, e que integra a programação da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, sensivelmente vai abordar, de forma bem humorada, essa faceta frágil e tão humana das relações, sentimentos e intimidades entre pessoas, através de um casal, Ale (Itsaso Arana) e Alex (Vito Sanz) que comumente decide se separar e celebrar essa separação com uma festa entre pessoas queridas. Afinal, se há a celebração de uniões, por que não celebrar seus rompimentos se eles fazem parte da vida?

Ao Contrário (Volveréis) é um filme que se move por um amor maduro, não-idealizado, o amor de repetição, que precisa reafirmar sua necessidade de acabar – nos personagens, na metalinguagem, na imagem que vai se montando – para entender seu momento e ser devidamente celebrado, seja no seu fim, seja no seu recomeço. O diretor vai brincar com a profissão dos personagens (ela é diretora de cinema, ele é ator) e com a metalinguagem para fazer da decisão deles uma boa ideia para um filme e transformá-lo, aos poucos, em algo que está sendo construído e montado pelos próprios personagens no trabalho, a ponto de não sabermos se foi a vida que influenciou a arte ou o contrário. A própria estrutura vai nos confundindo, vai transitando no filme dentro do filme, insere elementos dramáticos que imediatamente nos tocam, para em seguida percebermos sua descontextualização. Durante o filme de Jonas Trueba, Ale está editando o próprio filme, desordenado, sendo alinhando em som e imagem, tão confuso como sua própria vida.

A presença da mesma história em muitos níveis da linguagem integra a proposta do amor de repetição como o mais maduro. Ale e Alex querem festejar sua desunião, e para isso precisam convidar as pessoas queridas de seus convívios sociais, e consequentemente, contar a mesma narrativa e argumentação várias vezes, para cada uma delas, inclusive, em outra língua, o que vai tornando a expressão dos sentimentos mais difícil (expressar sentimentos em uma língua que não é a sua é trabalhado por Hong Sang-soo em A Traveler’s Need) – vamos nos separar, foi uma decisão conjunta, estamos bem e queremos celebrar. A notícia e o convite são sempre conduzidos por um receio mútuo, já que a reação das pessoas geralmente é muito incrédula. O que eles propõem, naturalmente, não é convencional. A própria origem da ideia de celebração, que vem da mente desconstruída do pai de Ale, nota-se ter uma conotação muito mais ilusória do que uma desconstrução social concreta.  Pessoas usam outras relações como parâmetros para as suas, e quando esses parâmetros falham, há uma desestabilização de um contexto para muito além do casal. 

Se em suas falas os personagens externam com convicção sua decisão, seus instintos e  trocas profundas de intimidade vão ditar um sentido diverso daquele proposto pelas palavras.  Parece que não há, de fato, certeza absoluta de nada. Dizem estar bem, mas aumentam sobremaneira o consumo de álcool e cigarros. Estão convictos da separação, mas à noite, é ele quem apazigua os pesadelos dela simplesmente ao tocar suas mãos enquanto ela dorme, ou, é ele quem troca os lençóis sujos de menstruação dela, o que é extremamente comovente. Existe uma estreiteza quase que espiritual entre essas pessoas, porque elas se conhecem muito bem. Mas há, também, o reconhecimento de que tal estreitamento não é suficiente para manter a saúde de uma relação.

Ao Contrário é um belíssimo e comovente filme que nos insere no caos e nos cacos dos relacionamentos para mostrar que reconhecer o fim do amor também pode ser uma demonstração dele. Ou ainda, que o fim do amor pode ser o recomeço de um novo, restaurado, que precisou da repetição para se tornar maduro. Como o próprio pai de Ale nos traz, o amor de repetição é o único que existe porque representa a segurança do momento. Pode soar clichê, mas a vida nada mais é do que uma coleção imensa desses momentos, nem sempre seguros, nem sempre memoráveis, nem sempre compostos de amor.

Nota:

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