No Other Land | 2024
O mundo como o estamos vivenciando hoje não é um lugar bom. Talvez nunca o tenha sido, mas paira uma sensação de desesperança nos acontecimentos e nas pessoas que rapidamente se alastra, porque, benção ou maldição, lidamos com tudo em tempo real e absorvemos rapidamente sentimentos que se formam (e que também são manipulados) a partir dos fatos. Se a globalização da informação nos permite compreender de forma mais próxima eventos que ocorrem em outros hemisférios, com a mesma facilidade podemos adquirir uma frieza de autoproteção que não nos permite um envolvimento maior, em prol de nossa própria saúde. O problema surge na repetição: quanto mais somos bombardeados por esse sentimento, maior é o aprendizado da indiferença. É evidente que é individualmente muito mais benéfico permanecer distante.
No Other Land, documentário dirigido por Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor que integra a competição de novos diretores da 48ª Mostra Internacional de São Paulo, e foi vencedor do prêmio de melhor documentário e do prêmio do público da seção Panorama Documentário no Festival de Berlim 2024, além de receber o prêmio do público nos festivais CPH:DOX, Visions du Réel e IndieLisboa, vai provocar nossa relação com tais sensações e seus bloqueios protetivos, ao nos aproximar de pessoas que, por motivos de sobrevivência coletiva, precisam criar um endurecimento aos fatos porque experimentam, diariamente, coisas horríveis. Abandona-se a autoproteção e o zelo pela vida em prol daquilo que precisa ser feito a qualquer custo – evitar o apagamento total da história de um povo. Não há alternativas, faz-se e persiste-se ainda que não haja mais esperança.
O local é Masafer Yatta, um conglomerado de aldeias situado na Cisjordânia, em Hebron, Estado da Palestina, comunidade ancestral do diretor e ativista palestino Basel Adra, que por décadas vem sofrendo ataques estratégicos de Israel, que expulsa o povo que lá vive de forma gradual sob o argumento de trata-se de terras israelenses de finalidade militar. O diretor, assim como sua família, vivencia e luta contra essa expulsão desde sua infância, e faz uso de sua câmera como documento contra essa brutalidade. O codiretor Yuval Abraham, jornalista israelense ativista favorável à causa palestina, se aproxima de Basel, e No Other Land vai expor os registros da luta de ambos.
No Other Land é um documento histórico sobre a resistência das famílias palestinas que lutam para se manter em suas terras, imagens feitas no risco, na impotência que se transforma em força de sobrevivência. Por vivenciarem a resistência todos os dias, a exposição dos codiretores ao muito palpável risco de morte diante da violência isralense já existe. Eles elevam ainda mais esse risco ao afrontar essa parte contrária com suas câmeras sem medo. Para cada casa que eles derrubam, para cada poço de água que é coberto de cimento, para cada plantio que é destruído, o registro está ali, próximo, direto, frontal, corajoso.
O documento se volta também à humanidade desses dois jovens, que abdicam de suas vidas individuais. Não há perspectiva ou sonhos comuns às pessoas da idade, ter filhos, casar-se, tudo soa muito distante e inatingível. O registro da intimidade entre eles, do cansaço de cada dia, do compartilhamento da vontade de desistir e do apoio mútuo de persistir, é o que vemos que dá energia à resistência.
O que busca se preservar não é somente a vida. Essa, individualmente, até perde seu valor diante da monstruosidade do agente da violência e as poucas opções de combate das vítimas. A preservação buscada pelos diretores com tal documento é a da história, a luta pela ancestralidade, pelas terras que guardam povos e suas memórias. Admitir que o apagamento palestino vem sendo bem sucedido é a grande e imensurável dor do filme, uma dor que grita para que seja compartilhada, seja ouvida. O fato do filme ter sido realizado antes do início marcado da guerra torna-o ainda mais amargo e desolador. É quase como se a luta que vemos no filme fosse em vão. E se o resto do globo tudo assiste com a capa de frieza que aprendeu a utilizar, concluímos que, de fato, o mundo não é um lugar bom.