The Outrun | 2024
O Isolamento como mecanismo de cura
Muitas vezes o afastamento é a melhor forma de lidarmos com situações de crise. Quando criamos uma distância segura dos problemas que vivemos, não apenas ficamos menos reféns deles, como também conseguimos enxergar com mais amplitude o tamanho de nossos conflitos e batalhas a enfrentar. Em The Outrun, novo longa-metragem dirigido por Nora Fingscheidt, realizadora e roteirista alemã que gosta de tratar especialmente de protagonistas femininas em seus filmes, como em System Crasher (2019) e em Imperdoável (2021), acompanhamos a jovem Rona (Saoirse Ronan) em sua jornada para se distanciar e superar seus vício precoce em álcool.
Rona estuda biologia e tem uma conexão enorme com a natureza, fatos esses evidenciados de forma bastante peculiar pela direção, que dedica a mostrar momentos contemplativos para narrar os vazios e o peso que a protagonista vive internamente. É um ponto essencial para nortear o processo de recuperação da personagem, que deixa, com pesar, a cidade de Londres – lugar que adora pela badalação, amigos e vida noturna, para viver nas Ilhas Órcades, onde cresceu e onde seus pais moram separados. Vinda de uma relação familiar conturbada pela doença mental de seu pai, que sofre com crises de bipolaridade, e uma mãe não muito presente, Rona encontra no álcool a maneira de lidar com seus traumas e limitações.
“Eu não consigo ser feliz sóbria”, é uma frase que a personagem diz a um amigo e que indica a complexidade de seu problema, mas também os primeiros passos que assume em direção de uma melhora. Baseado na autobiografia da jornalista britânica Amy Liptrot, que relatou sua luta contra o alcoolismo, e que co-roteirizou The Outrun ao lado de Fingscheidt, o longa é um estudo profundo de personagem, feito para que Rona cresça, acertadamente através da incrível performance de Ronan. Uma protagonista de cabelos loiros quase brancos, mas que vive em transformação, há uma transição constante de cores, que fazem lembrar a personagem Clementine, interpretada por Kate Winslet, no filme de Michael Gondry, mas não só por isso. Assim como Clementine, Rona é espontânea e tem espírito rebelde, não quer apagar algo ruim para superar o seu passado, mas decide encará-lo de frente para esquecê-lo.
Após passar por inúmeros grupos de apoio (AAs) para tentar se reabilitar, a protagonista que sofre diversos deslizes, perde um grande amor e boa parte de sua dignidade ao cair bêbada por bares e ruas, consegue uma reconciliação consigo mesma ao ir o mais distante possível, não só da cidade de Londres, mas também dos seres humanos. Rona se afasta ainda mais, indo para Papay, uma das ilhas do referido arquipélago, um lugar ermo, frio, bem mais ao norte, em um processo de auto descoberta e conexão com os estudos acadêmicos e a natureza. Esse elo final é o que evidencia o que a jovem precisa para se sentir pertencente a esse mundo outra vez. Ao identificar genuinamente o que ama, ela se reencontra e tudo parece voltar a fazer sentido. Um equilíbrio que é atingido por um movimento agressivo de afastamento.
The Outrun é um estudo de personagem que faz de maneira poética um retrato de amadurecimento e de resignação de uma protagonista em constante luta contra o vício e seus traumas familiares. Saoirse Ronan é a alma do filme, encenando Rona, e Nora Fingscheidt consegue extrair fragilidade e potência numa narrativa que flui com intenso esforço em fazer uma observação pacífica do caos. Explorando os aspectos mais subjetivos das crises de Rona, a diretora encontra uma maneira de nos apresentar a ela intimamente.
Esse filme foi assistido durante a cobertura da 26ª edição do Festival do Rio, confira mais aqui