Os Enforcados | 2024

Os Enforcados | 2024

Dos muitos significados que a carta do enforcado (ou pendurado) representa para o tarô, um deles se relaciona ao aprisionamento, ao estado de suspensão e expectativa de algo, ou ainda, ao sacrifício necessário na perseguição de um ideal. Quando Os Enforcados, de Fernando Coimbra, exibido na Mostra Brasileira da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, se inicia, a primeira imagem que vemos, mediada por uma trilha sonora de estranheza, é a de um tipo de estátua de palhaço. A música cessa para que Regina (Leandra Leal) surja com um martelo e o quebre. Da mesma forma com que o palhaço nos faz remeter às cartas de tarô que darão motivação às atitudes e interpretações da personagem, sua violência abrirá caminhos para conjecturas sobre a forma como vai resolver as situações em que ela e o marido, Valério (Irandhir Santos), se submeterão a partir da notícia de que estão, financeiramente, enforcados e falidos. Regina representa a ferocidade de quem luta, sem escrúpulos, para a manutenção de seus privilégios como pessoa branca, ao mesmo tempo em que vive uma realidade encarcerada e dependente do marido da qual ela quer se livrar.

Fernando Coimbra escolhe o universo sujo e desonesto da máfia dos jogos de azar carioca para dar cenário a esse casal que enriqueceu às custas do crime, e que vem construindo a casa idealizada no local dos sonhos, sob a mata atlântica que faz do Rio de Janeiro uma das paisagens mais bonitas do país. A queda de Valério ante a má administração dos negócios faz parar o sonho, e a vida de fetiches e fantasias que protege a redoma de Regina começa, outrossim, a cair. Derruba-se a ilusão de que ambos viviam um pelo outro e surge a desconfiança na medida em que, na intenção de ajudar o marido e manter seu modo de vida, Regina começa a se envolver e instigar decisões a partir da oportunidade que enxerga nas cartas de tarô, levando-os a uma bola de neve de acontecimentos delinquentes e cada um começa a agir para salvar sua própria pele.

Regina é uma mulher, branca, dona de casa, violentada física e psicologicamente pelo marido e alimentada por essa mesma violência a partir do fetiche sexual. É, de fato, uma verdadeira madame vítima da dependência financeira do homem que provê, e que a quer pronta quando chega em casa do trabalho. Muito embora desprezível e representante um tanto caricatural de todo privilégio que ela representa com sua branquitude de classe média que se entende como rica, é delicioso assistir Leandra Leal usar dos ares de Lady Macbeth para manipular tudo e lutar por si mesma, ainda que da forma mais condenável e infame possível. Pistas sobre a natureza atroz de Regina nos são dadas de forma muito pontual e rigorosa pelo diretor, e sabemos que a personagem tomará para si a atenção em algum momento. Nenhum passo seu será dado se não em benefício de si própria – uma amarga, porém bem-vinda, vingança contra a estupidez e os assédios de Valério.

A casa dos sonhos, essa redoma criada pelo marido para manter sua esposa, muito embora situe-se defronte ao mar em um lugar de beleza incontestável, nos é mostrada em becos escuros, mal iluminados, como uma prisão luxuosa e mal assombrada. A trilha sonora jazzística de Thiago França reforça os ares de estranheza daquele local que vai se tornando ambiente de pesadelo. Esse lar em construção, de fundação sanguinária, é também espaço para que o diretor explore algumas relações sociais e raciais – e é aqui, talvez, que cause maior incômodo. 

A inserção de duas personagens negras em situação de subalternidade – o homem de confiança de Valério, interpretado por Thiago Tomé, e a empregada da casa  (cuja intérprete, infelizmente, não localizamos nos créditos) – muito reflete sobre forma como pessoas brancas de classe média ascendida enxergam pessoas negras como da família até que se prove o contrário, e também como exploram e se aproveitam delas em reforço de suas invisibilidades. O problema é que, muito embora talvez a crítica a essa visão branca esteja abertamente presente no contexto narrativo, Os Enforcados finda por reforçar essa invisibilidade, ao reproduzir, até, um jeito novelesco brasileiro de colocar, por exemplo, mulheres negras como empregadas de uniforme servindo às suas senhoras. A ausência de maior abordagem a esse respeito tristemente reforça os estereótipos contra os quais luta-se para superar.

Os Enforcados, essa tragédia do mundo do crime de humor avinagrado, traz um gostinho brasileiro ao gênero que proporciona muita satisfação. Jogo do bicho, escolas de samba, pessoas sem escrúpulos, crime organizado em terras cariocas, o fetiche que faz transparecer violências dessa sociedade branca imoral, são elementos que nos são conhecidos e que fazem da obra de Coimbra uma deliciosa experiência sanguinária de vingança de madames desprezíveis.

Nota:

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