Éramos Crianças | 2024

Éramos Crianças | 2024
Uma novela italiana

Histórias de amigos de infância que, por algum motivo, acabam se distanciando na vida adulta, mesmo após a promessa de eterna amizade, já se tornou um lugar comum de narrativas dramáticas. Mesmo assim, esse pretexto rendeu grandes obras fílmicas e literárias, quando trabalhadas com esmero e honestidade, como, por exemplo, a genialidade de Clint Eastwood em Sobre Meninos e Lobos (2003), ou o clássico livro It: A Coisa (1986), de Stephen King. Não é o caso de Éramos Crianças, filme de Marco Martani que também busca reunir um grupo de amigos traumatizados para lidar com seus problemas agora na vida adulta, porém com um apego meramente estético e nada psicológico.

Buscando ares de intelectualidade, o filme mescla a montagem em dois tempos, a infância e a atualidade na vida adulta, marcados profundamente pela diferença na fotografia: o antes é muito mais saturado e iluminado. Começamos acompanhando Cacasotto (Francesco Russo), um conhecido carteiro de um vilarejo na costa calabresa, quando é capturado pela polícia em uma ação suspeita. À noite, em frente à casa do senador Rizzo (Massimo Popolizio) empunhando uma faca gigantesca, ele ameaça dois policiais e por isso é levado a interrogatório. A cena gera uma óbvia estranheza, pois não conhecemos as motivações do personagem. Mas, o que se segue, é um apanhado de clichês, seja pelo estereótipo de “sujeito esquisito” de Cacasotto, ou pela forma como os policiais o interrogam. A câmera os circula em volta da escrivaninha mal iluminada enquanto o suspeito não responde a nenhuma pergunta dos oficiais e age como se não estivesse ali.  

Outras histórias paralelas do presente vão sendo inseridas aos poucos e acumulando ainda mais clichês. Não há qualquer sutileza em representar, por exemplo, Gianluca (Alessio Lapice), um dos amigos que trabalha como policial do choque e não consegue controlar sua violência, inclusive agindo agressivamente com seus colegas e superiores sem nenhum motivo. Também é o caso de Margherita (Lucrezia Guidone), a única mulher do grupo, que, logo em sua primeira aparição, oferece seu corpo gratuitamente a um desconhecido. O último elemento do trauma infantil é Walter (Lorenzo Richelmy), agora astro do rock conhecido como Inferno, com seu rosto tatuado e sua música gritando violência e dor. Ou seja, todos eles carregam o trauma em ações escrachadas, obviedades que não dão profundidade alguma ao que suponhamos que viveram juntos anos atrás.

Depois que todos nos são apresentados atualmente, alguns flashs nos revelam a relação deles no passado. Em um verão na mesma costa onde apenas Cacasotto ainda vive, os amigos e suas famílias se reuniram para a diversão na praia. Àquela época, Rizzo já era senador e figura emblemática na vila, como um líder (ele mesmo se intitula como “pai” da comunidade). Sua caracterização e trejeitos vilanescos lembram as novelas mexicanas que ficaram tão famosas no Brasil. Devido a sua ausência com a família, seu filho, Peppino Rizzo (Giancarlo Commare) passa bastante tempo com o grupo de amigos e seus familiares. Os adultos parecem nutrir respeito e medo com a figura enigmática do rico senador, reforçando sua aura poderosa naquele vilarejo.

A trajetória que Martani tem em mãos agora é levar o espectador a ligar as linhas cronológicas, dar luz ao estranho evento que aprisionou Cacasotto e ao passado que aquelas crianças viveram juntas. Então, descobrimos que a chave é Giancarlo, que com uma mensagem no telefone de seus colegas, anuncia sua ida até a Calabria para se vingar do que havia acontecido e deixa o convite em aberto para que o acompanhem. Todos o fazem sem hesitação. Quando se reúnem, são novamente com diálogos e cenas expositivas que a situação se revela. Cada um dos personagens traz consigo subtramas que nada acrescentam para essa “missão” vingativa, criando um emaranhado de cenas dispensáveis: Margherita tem um irmão viciado em drogas, o rockeiro tem uma filha que aliena, o carteiro é chamado de covarde o tempo todo, Giancarlo tem um desafeto antigo com Walter.

Éramos Crianças acumula artifícios bizarros para que as ações se sucedam, e, quando realmente tomamos conhecimento do porquê das dores daquelas pessoas, nada parece fazer sentido. Cacasotto, Margherita, Walter, Giancarlo e Peppino são meros objetos de um enredo absurdo que transforma traumas profundos em cenas patéticas, como o ato maligno do senador Rizzo contra os pais daqueles jovens que vai desencadear a vingança 20 anos depois. O mais estranho é, ainda, a aleatoriedade das decisões dos familiares para, então, receberem o ódio de Rizzo, algo que nem o próprio diretor dedica muito tempo a explicar.

Temos aqui um bom exemplo de filme que subestima a sensibilidade de seu espectador, julgando que as dores dos personagens que assistimos não seriam compreendidas se não fossem suas exibições pitorescas e agressivas. Éramos Crianças veste uma carapuça de psiquê problemática para resolver tudo do modo mais banal possível. É preciso, agora, que assistamos Sobre Meninos e Lobos para lembrarmos o quanto um trauma coletivo de infância pode ser bem explorado pelo Cinema, ressignificando as relações e questionando as moralidades.

Nota:

Author

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *