Filhos | 2024
Nos países onde não rege a pena capital, os sistemas prisionais possuem (ou deveriam possuir), em linhas gerais, a dupla finalidade de punir pessoas pelos crimes a que foram condenadas e propiciar a disciplina para a ressocialização. É evidente que questionamentos não faltarão para a forma como a maioria das penitenciárias não constituem o local ideal e propício para educação de presos para que sejam melhores pessoas na sociedade. De fato, trata-se, nesses casos, de um ambiente de desumanização e pouco interesse de reinserção coletiva. De outro lado, surgirão também indagações a respeito da possibilidade concreta de ressocialização do detento. Existem casos irremediáveis, que envolvam uma natureza má inerente ao ser humano? Ou, ainda, existe perdão para os crimes contra a vida?
Não é por acaso que o diretor sueco Gustav Möller denomine Filhos no plural. O longa, que integrou a competitiva da 74ª Berlinale, vai se passar quase que inteiramente na clausura do sistema dinamarquês, nos levando a conhecer Eva (Sidse Babett Knudsen), uma agente penitenciário que cumpre seu papel com cortesia e esforço nas atividades educacionais com os detentos. Quando o olhar gentil da trabalhadora levemente torna-se aflito e temeroso percebemos, nessa sutil modulação da atriz, que aquilo que provocou a mudança será condutor da narrativa: ela vê, nas câmeras do presídio, a chegada de um indivíduo específico que chama muito sua atenção. Tensão e preocupação vão tomar conta de seu semblante até que ela consiga se aproximar desse preso, o jovem Mikkel (Sebastian Bull Sarning), abandonando de vez o ar afável que nutria inicialmente, o que finda por afetar seu exemplar comportamento no trabalho.
Muito embora essa seja, tristemente, uma informação constante na sinopse de Filhos, descobrir de forma gradativa os motivos para que aquela mulher passe a se comportar movida por ódio e falta de ética profissional é um interessante trunfo para aqueles que passam despercebidos às informações prévias dos filmes. Eva é uma mãe enlutada, teve seu filho assassinado. Mikkel possui uma mãe amorosa, sua única visita na prisão, e é, ele mesmo, assassino, sendo essa apenas uma das razões de seu cumprimento de pena. O novo detento, que desperta tamanha mudança na protagonista, é o responsável pela morte de seu filho. Eva vai forçar uma aproximação física com Mikkel ao solicitar a transferência de seu setor para o de segurança máxima, onde ele está, manipulando intenções e a rotina de seu ofício para atuar em vingança, abusando do poder que possui para causar sofrimento e, inclusive, torturá-lo.
Möller vai costurar a vida desses filhos, um assassino e um assassinado, e suas mães, que assistem as crianças que fizeram crescer tornarem-se homens brutamontes cruéis, irremediáveis e incontroláveis, dos quais passam a nutrir medo e distância. Mães que, paradoxalmente, temem seus filhos e temem por eles. A revelação do passado de Eva e seu distanciamento do filho até a morte dele vão tornar seus atos ainda mais complexos e repletos de remorso, visto que sua aproximação de Mikkel reforçará o sentimento de culpa e a fará uma espécie de algoz inevitavelmente maternal. Enquanto ela busca puni-lo à sua maneira e arbítrio, seu excesso provocará violações aos direitos humanos do detento que causarão a inversão do ônus manipulativo, fazendo surgir uma espécie de jogo entre eles. Ódio e compaixão se misturarão no semblante da personagem.
Seria o instinto masculino o de uma violência inerente, mas socialmente controlada, e tais filhos o exemplo da falta desse controle? Os Filhos representados aqui, do que conhecemos e vemos refletido no comportamento extremamente imprevisível e violento de Mikkel e no que ouvimos do relato de Eva, questionam a falência social que os faz gerar. Eva é uma mulher que notoriamente se mostra vencida, derrotada pela maternidade, que se autocondena por aquilo que lhe fugiu do controle, pelo filho que se tornou um monstro irreconhecível, mas pelo qual ela sofre constantemente. Na clausura violenta, ela encontra no abuso de poder uma forma de redenção pela falência a qual se entrega. E julgá-la, por maior que seja nossa pretensão, é impossível.