Malu | 2024

Malu | 2024

Um drama familiar visceral e arrebatador

Em uma interseção de gerações que mantém uma relação familiar nada pacífica, Malu, primeiro longa-metragem de Pedro Freire, é uma obra inspirada na vida da atriz paulista Malu Rocha, mãe do diretor. A personagem-título é interpretada brilhantemente por Yara de Novaes, que encarna uma mulher visceral, de personalidade forte e muito amor pela arte. É preciso coragem bastante para os tufões sentimentais que filmes tão pessoais quanto esse podem causar, dito isso, o trabalho de Freire é admirável.

Malu é uma mulher de meia idade, que outrora fora uma atriz de sucesso e que tem seu passado marcado pela ditadura no Brasil, fato que relata em rodas de conversa com sua filha Joana, interpretada por Carol Duarte, e amigos. Malu está muitas vezes em estado de excitação, entorpecida pelo álcool ou pelo fumo, ela lida com o próximo com bastante entusiasmo e um constante espírito de enfrentamento. Curioso ela ser uma personagem que lembra muito meu próprio pai, dessas pessoas que repetem a mesma história diversas vezes, como se estivessem contando pela primeira vez, e que provocam discussões homéricas e verbalmente violentas, mas logo em seguida agem como se nada tivesse acontecido; também uma sonhadora incurável, sempre projetando algo, provavelmente, inalcançável. Não é nada fácil lidar com familiares assim e esse peso é sentido através da personagem de Carol Duarte, que abraça com ternura e olhar sofrido, o papel de filha de Malu.

A atriz desempregada e sonhadora vislumbra construir um teatro e um espaço artístico no quintal de casa, fazendo obras de extensão na humilde residência que divide com sua mãe, Dona Lili (Juliana Carneiro da Cunha). A relação entre elas é agressiva, beirando às vias físicas e constantemente extrapolando os limites do verbo, mas, mesmo assim, paira a presença do acolhimento familiar, de um amor exausto, mas que persiste e por vezes se impõe. O longa de Freire, vez em quando, soa como um gole de uma bebida difícil de tragar, mas que ao mesmo tempo preenche e acalenta, por nos trazer à intimidade de um núcleo familiar conturbado, cheio de conflitos cotidianos, que nada mais são do que conflitos humanos, que geram identificação e refletem um interessante espelhamento no espectador. 

Joana chega da França e desembarca no Rio de Janeiro, a fim de matar a saudade da mãe, passa um tempo em casa com ela e com a avó, mas sem intenção de ficar. Freire, quando está em espaços externos, usa planos mais abertos e quadros iluminados, mas quando está na residência de Malu, um local de conflito e recordações desagradáveis de um casamento que não deu certo e de uma família que se separou, a iluminação é baixa e os planos se fecham. Há momentos muito afetuosos entre Joana e Lili, e entre Lili e Malu, mas o que fica mais evidente é o destempero das relações; a discussão na mesa da sala a respeito o alho colocado no arroz, a barata que passa em cima da mesa, os absurdos ditos de maneira impulsiva e que ferem intensamente. 

Yara faz um trabalho espetacular de atuação quando interpreta Malu, dançando e cantarolando sozinha na sala de casa, em momentos em que está em seu próprio universo, lembrando Gena Rowlands, como Mabel, no clássico Uma Mulher sob Influência (1974), de John Cassavetes. São duas personagens que parecem ser inadequadas o tempo todo e que precisam, de alguma maneira, serem contidas. Mabel é amada incondicionalmente por seu marido, mas por seus problemas de comportamento, acaba sendo internada por ele. Malu convive com uma mãe idosa, extremamente religiosa e intolerante, que é desequilibrada em seu trato com a filha, e por mais que se violentem de diversas maneiras, Malu deixa claro: “Eu nunca vou colocar minha mãe num asilo”, talvez temendo por seu próprio futuro.

Malu estreou no Brasil na mostra competitiva da Première Brasil da 26ª edição do Festival do Rio, onde levou os prêmios de Melhor Longa-Metragem de Ficção (junto com Baby), Melhor Roteiro, Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante . O longa também foi exibido na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e fez première mundial na World Cinema Dramatic Competition, mostra competitiva do Festival de Sundance, passando ainda por outros festivais internacionais. Pedro Freire mostra vigor em retratar a visceralidade de um drama familiar, sendo muito assertivo com seu elenco e com o tom generoso que escolheu para compartilhar sua história.

Nota

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  • Jornalista carioca, editora e crítica de cinema. Tem foco de interesse e pesquisa em cinema de gênero e feito por mulheres.

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