Santino | 2023
A mística das veredas do sertão mineiro
Deve haver um pouquinho de loucura em cada um que desafia a estrutura vigente e tem coragem suficiente para denunciar a hipocrisia de um sistema pautado no consumo e na destruição. Talvez seja esse o caso de Santino, personagem-título do novo documentário de Cao Guimarães, um morador da zona rural mineira que se orgulha de ter encarado de frente os grileiros que desmatavam o cerrado, que se conecta com a natureza de uma forma estranha aos olhos da vida urbana, mas pura e sincera como seu ativismo.
Ora inventor, ora médico, Santino é um personagem que chama atenção pela mística de sua ligação com o ambiente que o cerca, o sertão de Minas Gerais na bacia do Rio São Francisco, as veredas mineiras. Guimarães o filma justamente com essa curiosidade para se aprofundar nas teorias desse veredeiro, faz poucas e breves perguntas, porque seu interesse maior é em ouvi-lo e registrá-lo em sua rotina, enquanto mostra sua invenção que leva água aos moradores da região e explica a funcionalidade das plantas que encontra na mata.
Usando uma imagem com baixa saturação, o cineasta, que também assina a fotografia ao lado de Beto Magalhães, dá ares melancólicos, quase que distópicos, a seu filme. Aproximando-se do cinza, o cenário é pálido como se estivesse perdendo a vida. Essa escolha estética faz com que Santino se torne um elemento ainda mais carregado de misticismo ao se avizinhar da loucura defendendo algo que está “morto”, ou melhor, sendo assassinado por um sistema que é muito maior e mais poderoso que ele. Mesmo assim, Santino é quem busca resgatar as cores da natureza e vê ali sua missão de vida.
Mas Santino é menos uma obra ativista do que poética. Guimarães, como já o fez em outros trabalhos, como em A Alma do Osso (2004), prefere focar na íntima ligação do personagem com o lugar do que o caráter político e de resistência que ele representa. A maior parte do tempo acompanhamos os devaneios de Santino explicando sobre o domínio do corpo, a relação deste com a natureza e as missões das almas no mundo. Para ele, habitamos o que chama de “mundo escola”, lugar onde cada um dos “doze” planetas envia seus habitantes para aprenderem sobre a vida.
Muito do que fala, por mais que pareça loucura, acaba por trazer uma lição muito verdadeira e importante. Santino é como um filósofo cínico, capaz de afrontar convenções com uma sabedoria que grita com franqueza, algo que lembra Estamira (2004), documentário brasileiro de Marcos Prado que também investiga uma personagem assim, mas de forma muito menos comedida e muito mais politizada.
Alguém sem instrução acadêmica, morador da roça, um senhor que cultiva seu próprio alimento, que precisa bombear a água da nascente para sua casa, que tem energia elétrica apenas a partir de placas solares, tem muito a dizer e precisa ser ouvido. Mesmo que o diretor evidencie o dilema da loucura de seu personagem através da fala de sua esposa, quando ela questiona seu conhecimento medicinal e o contrapõe à ciência, Santino é colocado como um sábio, daqueles que carrega consigo um pouco de insanidade. O filme, que é tímido com questões políticas, abre-se para um olhar singelo e poético de uma figura que se coloca tão distante e estranha a nós, mas que muito pode nos ensinar sobre a espiritualidade da natureza.