Boa Menina | 2024

Boa Menina | 2024
Fatos inesperados que caem suaves como uma bomba

Boa Menina, longa-metragem de estreia de India Donaldson toma rumos inesperados ao trazer à lume discussões que parecem não se encaixarem no que o filme “parecia ser”. A narrativa se inicia a partir da relação de Sam (Lilly Collias) e seu pai, Chris (James Le Gros), que, juntos, decidem acampar com o fito de passarem mais tempos juntos. Afinal, não moram juntos. Na empreitada, Chris havia chamado seu amigo Matt (Danny McCarthy), que, por sua vez, achava que seu filho o acompanharia. Contudo, o adolescente nega o convite do pai, e a viagem segue apenas com os três.

O que se vê durante a viagem é, em suma, um “duelo geracional”, bem como uma exploração de estereótipos bem definidos entre os personagens. Enquanto Sam é a adolescente “antenada” com o mundo moderno, Chris faz as vezes do pai que tenta aproximar-se da filha, mesmo não tendo tantos “trejeitos” na comunicação necessária para essa aproximação. Matt, visivelmente acima do peso, aparece como aquele que não sabe como comportar-se em programações que envolvem uma rotina de atividade física e contato direto com a natureza.

Há essa exploração do “desconforto geracional”em momentos em que os pais acabam por reproduzir certos pré-conceitos acerca das formas de vestir e portar-se dos mais jovens, o que parece ser a escolha mais fácil para a direção evidenciar o que deseja. Mas, para além desse tema mais geral, a diretora é competente em explorar as idiossincrasias destes homens mais velhos e que encaram, cada um a seu jeito, a paternidade e a aproximação (ou não) com seus filhos.

Nesse sentido, Donaldson traz, com eficácia, uma certa dose de humor quando, por exemplo,  Matt leva uma bagagem absolutamente inadequada para aqueles dias “no mato”, assim como explora o caráter ranzinza de Chris e a imagem de quem, sempre sério, não “curte a vida”.

O filme desenrola trazendo reflexões paralelas, sobretudo no que tange a temas relevantes na contemporaneidade: quando, após horas de trilha, chega-se no topo da montanha e, ao invés de simplesmente dedicarem um tempo a contemplar a paisagem, isso é feito de forma fugaz. E, diante do belo cenário, Sam e Chris ficam presos nas telas do celular; ou a própria questão do trabalho de Chris, que, durante a viagem, é interpelado com assuntos referentes à sua profissão.

Enquanto Boa Menina parece seguir esse tom, de certa forma, de coming of age, as coisas passam a mudar quando Matt, em uma noite em que estão em frente à fogueira contando histórias assustadoras, passa a fazer um relato pessoal (travestido de história de terror) em que faz uma exposição bastante honesta, emocionada, de sua própria vida (talvez ocasionada pelo álcool, já que o personagem recorrentemente está ingerindo bebidas alcoólicas), evidenciando seus arrependimentos, frustrações e angústias. Finaliza descrevendo como o personagem de sua estória (em verdade, história) acabou por trair sua esposa.

Diante desta lamúria, cabe a Chris e Sam tentarem melhorar o astral de Matt, visivelmente abatido no que se apresenta como seu futuro sozinho, sem esposa e filho. A discussão passa a girar também em torno do divórcio de Chris e, também, aos dramas que ele carrega. Aqui, India Donaldson consegue, de forma magistral, conferir um peso à trama que é digno de muitos aplausos, ao trazer, de forma frontal, na discussão o tema do divórcio e suas consequências, algo que sempre orbitou na trama, mas cujo aprofundamento parecia estar fora da zona de interesse da diretora ianque.

Mas esse peso nem de perto se assemelha ao que estava no porvir. Essa mudança de rota, feita de forma fluida, prática e (por mim) inesperada no terceiro ato, faz com que o filme suba de patamar. A forma como o filme sai de algo mais singelo e dirige-se para um cenário mais complexo e pesado é digna de todos os elogios à diretora.

Ainda durante a conversa envolvendo seus divórcios e outros dramas pessoais, Sam parece acreditar que precisa fazer um papel de árbitra, de conselheira. Parece acreditar que sua posição ali naquela conversa (mas por que não na própria viagem?), mais do que seu desejo pessoal, serve para, talvez, amenizar a dor do pai. E, dadas as circunstâncias, passa a fazer isso também com Matt.

O desenrolar dessa conversa cai “suave como uma bomba”. Entre um gole e outro em seu cantil de bebida, Matt, em meio ao seu lamento e falas deprimidas, em oportunidade que se vê a sós com Sam, sugere que eles poderiam dormir juntos naquela noite, “para lhe proteger do frio”. O riso de Sam passa imediatamente a uma expressão de incredulidade.

A partir desse momento, o desconforto de Sam parece impregnar, também, o espectador. Donaldson, já se encaminhando para o final do filme, explora os silêncios de Sam na elaboração do assédio. Ao mesmo tempo, “afasta” Matt da ação mais central do longa-metragem, trazendo-o sempre de forma secundária, sem falas, como um fantasma que atormenta com sua presença.

Se surge, em um primeiro momento, a dúvida no espectador se o fato será contado ou não ao seu pai, ela é logo dissipada: Sam relata para Chris o ocorrido, e a sua reação desconsidera a gravidade do que foi feito pelo amigo, no que arremata: “Não podemos apenas ter um dia agradável?”. Outro imenso soco no estômago. Mais um peso que Sam precisa lidar e lida à sua maneira: com silêncio, reflexão e lágrimas.

É necessário, por fim, fazer um aparte sobre as atuações em Boa Menina. Lilly Collias, em sua primeira atuação, está impecável. James Le Gros cumpre com maestria seu papel. Mas, aqui, destaco, em especial, Danny McCarthy que, de forma magistral, faz com que seu personagem ande com um pé no humor/leveza e o outro em uma energia pesada que se materializa no terceiro ato. Assim, Boa Menina é um excepcional filme de estreia de India Donaldson que muda o seu tom de forma fluida, dotando a trama, inicialmente inclinada para o coming of age “singelo”, de um peso que, certamente, não deixará muitos espectadores incólumes.

Boa Menina esteve na programação da 48º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Nota:

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  • O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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