Herege | 2024

Herege | 2024
Salve-se quem puder

Quando um missionário bate à porta de alguém, presumimos que ele está muito certo de suas crenças, e que está ali para tentar angariar mais devotos ao Deus que acredita e segue. Em Herege, thriller psicológico escrito e dirigido por Scott Beck e Bryan Woods, dupla de cineastas americanos criadores da história e co-roteiristas do terror pós-apocalíptico Um Lugar Silencioso (2018), duas jovens missionárias chegam à casa isolada de um homem, e, após entrarem, encontram muita dificuldade e provações inimagináveis para conseguir sair. 

O longa abre com um interessante plano, mostrando as duas amigas, Irmã Barnes (Sophie Thatcher) e Irmã Paxton (Chloe East), sentadas em um banco de rua conversando explicitamente sobre assuntos sexuais, a câmera se afasta e vemos uma enorme propaganda de preservativo nas costas do banco onde elas estão. De lá, munidas de suas bicicletas e determinadas a cumprir sua missão do dia, elas seguem até a casa do Sr. Reed, um homem de meia idade, interpretado por Hugh Grant, ator que parece ser a aposta dos diretores para sustentar o filme. 

O dia é de tempestade e Sr. Reed, apesar da relutância das duas jovens que só se juntariam a ele na residência na presença de outra mulher, as convence a entrar. Ao entrar se deparam com a sala, um ambiente com baixa iluminação amarelada, local onde ocorre uma longa sequência de cenas onde os três apenas conversam. A câmera trabalha como um dos pontos de tensão, fazendo movimentos circulares em torno dos personagens, se aproximando bastante com foco em suas expressões, junto ao suspeito discurso de Sr. Reed sobre sua esposa estar no quarto e sobre uma suposta torta assando no forno. A partir dessa introdução ao universo um tanto quanto macabro do anfitrião, o filme segue trabalhando intensamente com o discurso e depositando suas apostas no texto.

Não demora para que Barnes e Paxton percebam que estão em um ambiente ameaçador e ao tentarem fugir dele, mas impossibilitadas de deixar a residência naquela noite, se veem obrigadas a entrar em um jogo de retórica, proposto por Sr. Reed, que não poupa esforços, nem palavras, para lhes questionar acerca da fé, da existência de Deus e de como ele se configura em distintas denominações religiosas. É interessante quando Herege trabalha o aspecto da sugestão e da dúvida, desde quando implantou a ideia de “como vocês têm certeza que minha mulher está mesmo no quarto?” ou de será que sentir o cheiro de uma torta de frutas, garante que ela realmente exista? 

Hugh Grant segura bem como protagonista, mantendo expressões meio alucinadas e assustadoras. Por vezes se torna cansativo ouvir um homem com ares de superioridade falando sem parar para duas mulheres, pode soar como um mansplaining desconfortável, mas aos poucos as meninas começam a reagir. Segue-se um jogo psicológico de resistência, que logo se tornará um jogo labiríntico de sobrevivência pelas profundezas da residência de Sr. Reed, que até lembra a saga Jogos Mortais, não pela crueldade das punições, mas pelo teor de querer estar sempre ensinando uma lição e criando armadilhas para que as vítimas compreendam o que está sendo “ensinado”.

Herege tem êxito em confrontar ideias sobre religião que valem a reflexão, faz isso de modo bastante expositivo, apoiando-se no texto e nos intensos diálogos, que muitas vezes são monólogos proferidos por Sr. Reed. Os diretores fazem uma boa construção de atmosfera de tensão, com ações que precisam ser cronometradas, por exemplo, e com perspectivas interessantes dentro do espaço da casa, dos cômodos sombrios, criando situações desconfortáveis que exigem tomadas de decisão dos personagens. Tem um interessante primeiro ato, mas não consegue manter o bom fôlego até o fim, caindo em clichês e escolhendo um desfecho fantasioso meio bobo.

Nota:

Author

  • Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

    View all posts

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *