O Senhor dos Mortos | 2024

O Senhor dos Mortos | 2024

O Voyeurismo macabro e futurista de Cronenberg

O corpo sempre foi objeto central nas obras de David Cronenberg. Mais do que o próprio horror em si, a parte fisiológica, orgânica, sensível e estrutural do corpo humano é o que fascina o diretor americano, que segue de forma sólida deixando clareza quanto a estes aspectos em seus filmes. Com apenas dois anos de intervalo entre seu último filme, Crimes do Futuro, o cineasta absorve o luto pela morte de sua esposa, Carolyn Zeifman, falecida há sete anos, e o materializa em forma de filme, em O Senhor dos Mortos.

Em entrevista à Variety, Cronenberg comenta o teor pessoal de sua inspiração: “Eu estava escrevendo este filme enquanto experimentava a dor da perda de minha esposa, que faleceu há sete anos. Foi uma exploração para mim porque não era apenas um exercício técnico, era um exercício emocional”; e explica a ideia central de seu filme: “A maioria dos rituais de sepultamento é sobre evitar a realidade da morte e a realidade do que acontece com um corpo. Eu diria que em nosso filme isso é uma reversão da função normal de um lençol. Aqui, é para revelar em vez de esconder”.

Se traduzirmos o título original ao pé da letra, The Shrouds significa “os sudários”, também conhecidos como “mortalhas”, que são vestimentas usadas para envolver o corpo de uma pessoa falecida antes do sepultamento ou cremação. Normalmente, é uma peça simples de tecido claro, feito com o objetivo de proporcionar dignidade e proteger a privacidade do morto durante a preparação para o funeral. O que Cronenberg busca em O Senhor dos Mortos, com os lençóis aos quais ele se refere, é cumprir um papel exatamente oposto. O diretor está interessado na exposição, mergulhando assim num cinema voyeurista, dentro de um universo futurista e high-tec, explorando a morbidez em ver beleza no corpo decomposto de entes queridos. 

O protagonista Karsh (Vincent Cassel), é um empresário do ramo funerário, que vende túmulos tecnológicos, onde é possível ter acesso à imagens de altíssima qualidade diretamente de dentro do caixão, através de uma mortalha que envolve o cadáver em decomposição. Karsh, um homem que vive assombrado também pelo luto em decorrência da morte de sua esposa, tenta aos poucos se reconectar com a vida social e amorosa, sem muito sucesso. 

Sua obsessão pela falecida esposa se evidencia quando dedica-se a vigiá-la no pós-morte, inclusive, se sentindo orgulhoso por poder ampliar de forma significativa as imagens de seu corpo decrépito através da câmera de alta resolução. Assim como em cenas lúdicas, que remetem a sonhos, em que Cronenberg faz alusão à saudade dilacerante sentida por Karsh, quando o protagonista  vai expressar a dor da perda através da materialização da imagem de Becca (Diane Kruger), a qual ele nunca é permitido tocar, apenas visualizar e sentir. Becca entra e sai do quarto do casal com o corpo cada vez mais mutilado, relembrando sua doença e, consequentemente, suas amputações. 

Assombrado não só pelo luto, mas por suspeitas de espionagem industrial, atos de sabotagem e diversas teorias da conspiração que se desenvolvem no decorrer da trama, e à partir da reconexão de Karsh com sua ex-cunhada,  Terry (também interpretada por Diane Kruger), uma amizade que vai tomando vias enviesadas por tensões sexuais e recordações dolorosas. Por falar em sexo, algo que Cronenberg sempre incorpora tão bem à suas narrativas, desde as mais absurdistas como em Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991), ou em Crash – Estranhos Prazeres (1996), este último, filme que esbanja tesão pelo corpo mutilado em acidentes dentro de carro, tem uma de suas cenas de sexo mais marcantes recriadas em O Senhor dos Mortos, onde os dois amantes se envolvem e mantêm a potência do diálogo entre eles na cama como impulsionador do desejo.

Parece de fato que Cronenberg não perderá jamais sua essência, embora não tenha mais feito filmes tão emblemáticos quanto os que realizou nos anos 90. O diretor realiza com um filme que revira suas próprias dores e relembra algumas de suas melhores obras, sendo fiel ao seu intenso fascínio pelo corpo, pelas imperfeições, pela forma do filme, e agora, pela morte.

Nota

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  • Jornalista carioca, editora e crítica de cinema. Tem foco de interesse e pesquisa em cinema de gênero e feito por mulheres.

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