Memórias de um Caracol | 2024

Memórias de um Caracol | 2024

A fetichização da tristeza e o apelo vitimista

Solidão, depressão, ansiedade, sentimentos de abandono, autoflagelo e problemas na família. Abro o texto com uma frase pesada para falar de um filme que busca, explorando aspectos como esse, uma identificação emocional profunda com quem o assiste. Memórias de um Caracol, novo longa-metragem de animação do australiano Adam Elliot, conhecido pelo sucesso de seu primeiro filme, Mary e Max – Uma Amizade Diferente (2009), traz personagens frágeis, que passam por incontáveis dificuldades na vida e tentam sobreviver a elas.

Somos apresentados a Gracie Pudel (Sarah Snook), uma mulher melancólica que coleciona caracóis e os cria em sua casa. Ela, já adulta, saudosista e triste, decide contar sua história de vida a um de seus amigos rastejantes.Somos então guiados por sua narração, convidados a voltar ao passado e conhecer a trágica trajetória de Gracie e de seu irmão gêmeo Gilbert (Kodi Smit-McPhee).

Adam Elliot continua primoroso com a animação em stop-motion, dando vida à seus personagens de massinha, sendo bastante detalhista na construção de cenários e caprichoso demais com o acabamento estético. Se em seu primeiro filme ele já mostrava interesse e predileção por uma estética mais sombria e dessaturada, em Memórias de um Caracol o diretor não faz diferente, adotando primordialmente uma fotografia em tom sépia, envelhecida e com cores bem sóbrias. Outra semelhança com sua obra anterior, é o desenvolvimento narrativo que circunda o universo do sofrimento infantil. No filme de 2009, Mary era uma menina solitária de 8 anos, enquanto neste, os gêmeos Pudel ficam órfãos e se separam praticamente com a mesma idade.

Primeiro o filme mostra como os dois irmãos eram inseparáveis e felizes juntos. Apesar de crescerem sem uma mãe e com Percy (Dominique Pinon), um pai carinhoso, mas um alcoólatra incurável e paraplégico, encontravam na estreita relação entre eles um motivo para seguir em frente e, de vez em quando, se divertir em família. A partir do momento em que Percy morre, as duas crianças sem condições de se criarem sozinha, são separadas e enviadas para lares adotivos. Daí por diante o filme adota uma sequência incontável de acontecimentos extremamente cruéis, que beiram o sadismo narrativo, envolvendo maus tratos, abusos sexuais, relações inadequadas, imposição religiosa, exploração infantil (e por aí vai).

Entendo que Elliot tenha achado sua forma de dialogar diretamente com a fragilidade humana diante das desgraças do mundo, muitas provocadas por forças das circunstâncias que por vezes podem ser imprevisíveis, criando cenários e situações cruéis, abraçando um niilismo que expõe escancaradamente a maldade e a miséria da humanidade. Porém me pergunto qual seu intuito, analisando sua obra que, desde o primeiro quadro e até quase o último, retrata Gracie e Gilbert em prantos, com alguns breves respiros para mostrar quem são, um pouco de suas personalidades, suas predileções por livros. Os momentos “arejados” no filme são raros. O longa dialoga bem com o sensível Marcel, a Concha de Sapatos, dirigido por Dean Fleischer Camp em 2021, animação onde uma conchinha vivia feliz até ter que lidar com o adoecimento de sua avó, e com a ânsia por reencontrar seus familiares distantes. Neste, também predomina um tom melancólico, porém sem exaltar o vitimismo dos personagens.

Memórias de um Caracol soa pretensioso em querer ser uma obra inspiradora, que explora o “coitadismonas situações em busca de empatia, com olhos chorosos em demasia, trazendo uma atmosfera sempre depressiva, que apela com todas as suas forças ao choro do espectador. Os personagens pouco reagem, apenas apanham e se deixam bater. O único ponto de luz é a inclusão da personagem Pinky (Jacki Weaver), uma senhorinha hippie que se torna amiga de Gracie e dá um pouco de alegria e cor ao mortuário que é sua vida. O filme, em dado momento, indica uma rejeição aos livros de autoajuda, quando parece se propor a ser propriamente um filme-autoajuda. Fetichiza a tristeza, através de um excesso de tragédias, como artifício estratégico de conexão.

Nota

Author

  • Jornalista carioca, estudou cinema na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, certificada em roteiro pelo Instituto de Cinema de São Paulo. Ama cinema de horror e os grandes clássicos.

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