Flow | 2024

Flow | 2024

Uma experiência navegante, espiritual e felina

É bom quando o Cinema se mostra capaz de resgatar algumas purezas provenientes de seus primórdios. É através das animações de Émile Reynaud, francês que criou o teatro ótico que projetava imagens animadas em movimento antes mesmo da primeira exibição pública proporcionada pelos irmãos Lumière, que a arte cinematográfica se fez e se desenvolveu. Flow, co-produção da Letônia, França e Bélgica, dirigida e co-escrita por Gints Zilbalodis, carrega essa pureza e uma certa ingenuidade justamente por exaltar aspectos caros em tempos de complexificação de tramas, expectativas e reviravoltas: a fascinação por narrativas simples que permitem que as imagens e acontecimentos fluam para nos deixar levar e a busca por sentimentos puros que naturalmente decorrem dessa imersão.

Zilbalodis também é responsável pela co-produção, fotografia, edição e trilha sonora de Flow. Muito perto de ser um trabalho de um homem só, o filme nos faz acompanhar um gato preto, sem gênero, solitário em sua rotina felina. Ele ou ela dorme, se lambe, caça, foge de predadores, sobe em árvores e transita livremente por uma floresta bonita cortada por um rio. Os sinais de sua solidão nos são dados no que parece ser sua casa, inabitada, mas repleta de indícios de uma pré-existência humana, do que poderia ou não ser sua família: a cama com lençois e travesseiros onde o felino se ajeita para dormir, papeis, móveis, elementos comuns de um lar, desorganizados como evidência de um abandono talvez forçado. Ao menos naquele espaço que nos é dado conhecer, o animal parece ser o único de sua espécie, e a inserção de estátuas em pedra de outros gatos, em posições diversas e tipicamente felinas, no quintal, basta para confirmar sua solitude.

O universo do filme, uma espécie de paraíso pós-apocalíptico tão belo quanto amedrontador, é dotado de regras próprias conhecidas pelo protagonista felino e pelos demais personagens que serão introduzidos. Somos levados a crer, pela ausência humana, pela grandiosidade e imponência das construções que se assemelham à templos, que estamos diante de algum lugar na Ásia, que vive as consequências de uma catástrofe climática – uma grande enchente (flood, como no nome original) que toma conta de tudo e faz o rio se elevar em níveis assustadores. Entretanto, o diretor não está interessado em situar Flow espacialmente em nenhum lugar conhecido por nós, e nem apresentar quais os motivos da enchente, ela simplesmente existe e é o fenômeno que vai ditar as regras da vida dos seres que ali sobrevivem.

Esse espaço inespecífico é ocupado apenas por animais. Até que a enchente venha, o gato se mantém a uma distância mais que segura de qualquer outra espécie. Ele precisa ser hostil com um simpático labrador ávido por fazer amizade, e fugir quando os demais membros de seu bando canino, composto por cães de raças menos dóceis, se junta a ele para iniciar uma perseguição ao felino. O desconfiado protagonista percebe que precisa encontrar um lugar seguro quando um grupo enorme de cervos dispara em fuga – o indicativo de que a enchente está chegando. O lugar seguro a ser encontrado deve flutuar, e nesse contexto, enquanto a água desesperadamente se eleva com uma velocidade impressionante, cobrindo casas, árvores e templos enormes, os animais se refugiam em pequenos barcos. 

As águas desse rio elevado ditam o ritmo de Flow e os acontecimentos que impulsionam os personagens a encontrar meios de sobrevivência em conjunto com outros animais. Espécies diversas, predadoras entre si, precisam dividir o pequeno espaço de um barquinho em prol do único ponto que os une, que é a necessidade de fugir das águas até que o fenômeno se vá. A animação computadorizada, que remete à pinceladas artísticas, mas não esconde seu estilo de animação 3D, modula um universo abundante de verde e azul, e recria as espécies animais de forma que nos conectamos com cada um dos personagens apenas por suas características típicas universais. O gato, que busca o isolamento, é constantemente desconfiado e arisco, agindo como um gato padrão. O labrador, outrossim, é o inconfundível representante de sua raça, empolgado, atrapalhado, muito dócil, com pouca noção de seu tamanho, que magoa-se facilmente quando rejeitado. Partilharão o espaço, ainda, uma capivara, um lêmure e um grande pássaro, além do restante do grupo canino diverso do qual, preteritamente, nosso gato precisou fugir.

Os instintos, ali, precisam ser deixados de lado. Esse grupo distinto precisa atuar em equipe em prol da sobrevivência. Muito embora uma parte deles, como, por exemplo, a capivara, sejam exímios nadadores, a água para eles é um ambiente hostil e dúbio. É fonte de alimento, mas também um ambiente ameaçador. É deslumbrante, guarda uma variedade infinita de peixes de todas as cores e tamanhos, embelezada como um verdadeiro jardim, mas deixar-se levar por seu maravilhamento pode ser fatal. Essa dualidade que une vida e morte, beleza e caos, tornará a atmosfera de Flow melancólica, tom que é muito bem representado pela trilha sonora de Zilbalodis, no reforço desse balanço entre a grandiosidade da tragédia e a pequenez dos personagens diante do que enfrentam.

A necessidade de sobrevivência de personagens puros, que não possuem qualquer controle sobre os acontecimentos (e, muito provavelmente, não guardam qualquer culpa para a ocorrência da catástrofe) e que precisam agir pelo ímpeto de viver, causam em nós, seres racionais que se autodenominam superiores, um envolvimento e comoção muito naturais. A capacidade de adaptação dos personagens a essa nova situação, inclusive, no aprendizado de tarefas necessárias como conduzir um remo, os faz superar diferenças que seriam vocacionais da espécie, de modo que eles abandonam suas individualidades em prol da vida coletiva, da ajuda mútua.

Flow é uma maravilha navegante e espiritual que, tal como os personagens que flutuam por águas tão envolventes quanto perigosas, nos guia e nos deixa levar pela fluidez desse mundo, evocando sentimentos e sensações puras, causadas por situações instintivas e personagens que guardam a mais genuína inocência. Lágrimas, sorriso no rosto e melancolia nesse amor tão grande em meio a um belo e aterrorizante caos.

Nota:

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