Nosferatu | 2024

Nosferatu | 2024

Nosferatu, em F. W. Murnau (1922) e Werner Herzog (1979), é o mal em sua forma vampiresca e enfermiça, obcecado, atraído e sedento por uma certa beleza feminina pura que se opõe ao que ele representa, a mulher que não pode lhe pertencer, seja pela monstruosidade de quem deseja, seja pelo casamento que a prende, e que, portanto, só pode ser obtida pela violência e pela coação. Se nas leituras fílmicas citadas a mulher desejada é símbolo de pureza quase imaculada e da imagem da perfeição e do amor, na versão de Nosferatu dirigida por Robert Eggers, que estreia nos cinemas brasileiros em 02 de janeiro de 2025, dando o pontapé inicial à temporada cinematográfica do novo ano, Ellen Hutter (Lily-Rose Depp) atrai por características  antagonistas às que lhe precederam: trata-se de uma mulher que goza o prazer sexual e que por isso é tida por insana, distanciada de qualquer candura.

É natural que se exija de Eggers uma renovação ante o desafio que ele se propôs a cumprir ao dar vida, novamente, a um Nosferatu. O diretor não sugere mudanças abruptas na trama original. Lança mão, porém, de fabular sobre uma normalidade aparente dos acontecimentos, ou uma felicidade estranhamente excessiva, como nas versões anteriores. Não há, na figura do marido Thomas Hutter (Nicholas Hoult) a inocência do recém casado. Não há, nessa família, uma confortável situação financeira. Não hesita em descarregar, logo na introdução do longa, uma atmosfera densa, sombria e direta, nos localizando no auge de todo terror que sua protagonista sofrerá: como que possuída, ela caminha, sonâmbula, em direção à voz que a chama enquanto a câmera circula ao seu redor, e tudo soa como trevas em seu entorno. Em seguida, somos levados aos acontecimentos prévios àquele, conhecendo uma versão de família que vive na pobreza, representada por um homem que aceita o trabalho rumo à mansão do Conde Orlok (Bill Skarsgård) apenas porque em dificuldades financeiras, e por uma mulher que já lida com uma delicada saúde mental, o que torna suas premonições e maus presságios menos críveis a quem os escuta. 

A renovação mais evidente é, de fato, a estilística. O diretor imprime sem rodeios sua marca em Nosferatu ao assumir um horror melancólico que vai ditar a atmosfera desprovida de vida – mas não de vida cinematográfica, uma vez que há um rigor formal e um apreço pela beleza triste de suas imagens que fazem o filme merecer cada espaço da tela de cinema, tamanha sua força de impacto e maravilhamento. Não há vibração de cores, não há claridade no filme de Eggers, que dá o tom com um azulado escuro por vezes iluminado pela luz do fogo, quando abraça tons alaranjados em meio às sombras. Mesmo nesses momentos, tudo é gélido e não há calor. As flores colocadas em vasos, que nos anteriores embelezavam a residência familiar e reforçavam tanto a harmonia do ambiente quanto a pureza feminina, são recusadas pela personagem de Lily-Rose Depp (Por que você matou essas lindas flores?). A melancolia é frontal e dá nome à perturbação constante que sofre a protagonista. 

Se o que atrai Nosferatu é a vida que pulsa na mulher que ele passa a desejar, quando Eggers se apega a uma atmosfera mórbida, e, inclusive, a uma personagem desvanecida e pálida, que diz, ela mesma, se sentir como uma boneca e não como um ser humano vivo, a vida percebida pelo vampiro obcecado é a que ferve, vermelha, invisível, nas veias, bem como a que reside nos órgãos sexuais femininos de Ellen, pelo desejo e pela menstruação. A protagonista é atraente à Nosferatu não por um pescoço bonito e alvo ou por inveja do amor que ela nutre pelo marido, mas também pela vida que pulsa nela pelo sangue, pelo fluxo menstrual intenso, pelo estímulo da circulação sanguínea, pela fertilidade feminina que habita aquele corpo em sofrimento.

Ao retratar o prazer feminino, o novo Nosferatu se aproxima mais do Drácula de Bram Stoker de Francis Ford Coppola (1992) do que dos longas de Murnau e Herzog. Ellen, como dito, é uma mulher cuja loucura é atribuída ao seu impulso sexual, ao prazer e ao orgasmo que ela faz representar nos gemidos de suas alucinações febris. O prazer é uma prisão, uma maldição que lhe foi lançada, e o sexo (no caso, a ausência dele) atua como forma de controle de mulheres que, quando se permitem o gozo, são tidas como pecadoras, insanas, e que por isso mesmo, se culpabilizam. 

A ideia de um vampiro que ruma em direção à sua amada para saboreá-la sexualmente e leva consigo ratos associados à transmissão da peste que assolou a Europa do século 14 confere à Nosferatu dualidades inerentes ao seu tempo, transicional entre a evolução científica e as crenças. Ciência e superstição, cidade e interior, crenças e racionalidade, são oposições que se incorporam à narrativa com uma importância elevada. A racionalidade das pessoas da zona urbana quase que impedem o trabalho do médico Van Helsing (Willem Dafoe), já que a cura não está exatamente na medicina, mas nos costumes, na ruralidade dos rituais. Essa ruralidade faz lembrar o excelente O Banho do Diabo, de Veronika Franz Severin Fiala, filme que conversa, assim como Nosferatu, sobre um modo de vida europeu rústico, comunitário e ritualístico fundamentado na religiosidade, e, portanto, prato cheio para o cinema de horror.

A única frontalidade da qual fugiu Robert Eggers foi a da representação do próprio Conde Orlok. O diretor rodeia e floreia a aparição do vampiro, entregando em closes partes de seu corpo monstruoso, criando um suspense que até agregaria, não elevasse tanto o mistério a um cansaço pela expectativa por sua aparência. Muito diferente dos condes anteriores, a criatura deste Nosferatu não é fragilizada, embora seja adoentada e de respiração difícil. Trata-se de um monstro vigoroso, grotesco, mas cujo aspecto corpulento tenta justificar a ideia do apetite sexual, ainda que de forma macabra.

Eggers cumpre, com êxito, sua missão de trazer um Nosferatu que não repita (e nem o quer repetir) os grandes feitos de seus anteriores. Compreende a grandiosidade do que já foi feito, respeita, assume a melancolia de seu horror, e dá outras roupagens, estilísticas e temáticas, a uma narrativa que já é muito conhecida. Fragiliza o marido para fortalecer a esposa, lidando com questões muito femininas e com a saúde mental de mulheres afrontadoras, de um tempo em que comportamentos de recusa às amarras eram sinônimo de loucura.

Nota:

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