O Castigo | 2023
por Alexandre Cunha
Mesmo com avanços relevantes no mundo contemporâneo em relação aos direitos das mulheres, há uma problemática ainda profundamente enraizada nas culturas patriarcais: a romantização da maternidade. O ideal de mãe quase como uma santidade, dotada de amor e proteção para com suas crias, é uma construção social, histórica, tão característica em países fundamentalmente cristãos, como o Brasil e o Chile – este último onde se passa a história do filme aqui discutido. Sob o desafio técnico de ser uma obra toda filmada em plano-sequência, O Castigo lança um honesto e impactante olhar sobre a família enquanto instituição patriarcal, dentro da qual a sobrecarga de obrigações recai, essencialmente, sobre os ombros da mulher.
Dirigido por um homem, o chileno Matías Bize, o filme tem uma premissa simples: irritada com alguma atitude do filho Lucas (Santiago Urbina) durante uma viagem de carro, Ana (Antonia Zegers) decide dar uma lição, um susto no garoto de 7 anos: deixá-lo sozinho na estrada, “não por mais que dois minutos”, enquanto dirige ao lado do marido, Mateo (Néstor Castillana). Quando retornam para buscá-lo, o garoto desapareceu. Inicia-se então a procura por Lucas,e toda a trama se desenrola no perímetro entre a estrada e a floresta que a rodeia. No fim da tarde, os últimos raios de sol tocam os personagens e a natureza. Com a noite, a temperatura cairá e a busca se tornará ainda mais difícil. Somado a este drama, há ainda a informação da existência de pumas na floresta. O perigo é latente.
Com um elenco de poucos atores e as limitações impostas pela tomada única, o roteiro, assinado pela espanhola Coral Cruz, é eficaz ao construir uma atmosfera de tensão crescente, onde cada fala é um passo em direção ao desenvolvimento dos personagens. Há frases ditas quase que aleatoriamente, como se não fossem importantes, mas que carregam um peso dramático muito sutil. Por exemplo, quando Ana ameaça o filho a ficar “um mês sem o tablet”, caso ele não apareça (ela insinua, no começo do filme, que o menino está fazendo uma brincadeira de mau gosto). Esse castigo já denota uma dinâmica familiar difícil, onde reprimendas e recompensas parecem fazer parte da relação. O texto de O Castigo é um dos grandes trunfos do filme: aos poucos, sem pressa (em contraste ao suspense que a narrativa provoca), o espectador vai descobrindo as razões das atitudes de cada personagem.
Na mesma linha de filmes como Arca Russa (2002, Alexandr Sokurov) e Victoria (2015, Sebastian Schipper), Matías Bezi faz uso do grande plano-sequência de forma apropriada. Em O Castigo, o artifício técnico ressalta a sensação de urgência daqueles pais desesperados. É interessante ver como a câmera do diretor transita entre os personagens, nunca de maneira avulsa. Bezi é cuidadoso ao enquadrá-los, ora com a luz do sol no rosto, ora totalmente sombreados. Para salientar ainda mais a verossimilhança da obra, o diretor abre mão de qualquer trilha sonora: todo o som do filme é diegético. É como se estivéssemos assistindo a um documentário.
Ao longo dos seus 85 minutos, a produção escorrega, aqui e ali, em alguns momentos repetitivos, como naqueles onde os pais gritam e chamam o filho em diferentes momentos da história. Mas são deslizes mínimos que não debilitam a narrativa. Por outro lado, as magnéticas atuações do casal principal tomam conta da tela. Néstor Castillana concebe muito bem a figura dúbia de um pai amoroso que é, ao mesmo tempo, uma figura reprovável. Mas a coluna vertebral da obra é Antonia Zegers. Desde os primeiros minutos, a experiente atriz chilena domina a narrativa com uma interpretação brilhante, dosando retidão e intensidade em cenas marcantes. É tocante perceber como a inicial frieza daquela mãe irritada com o filho vai se dissolvendo em dor, tristeza e desamparo. O diálogo final entre o casal é de uma potência dramática admirável.
Adentrando camadas de diversos temas relacionados à maternidade (renúncias profissionais, divisão desigual de tarefas entre mulher e homem, amor incondicional), O Castigo incomoda porque destapa dores profundas com as quais inúmeras mulheres se identificarão. “Eu não sou uma mãe ruim”, diz Ana, quase pedindo uma confirmação, durante determinado momento do filme. É um recado para todos que assistem: quantas mães não se sentem assim, julgadas o tempo todo? Por que nos achamos no direito de opinar ou criticar sobre a maternidade alheia? E o pai, por que não é igualmente cobrado?
Um filme-desabafo que alerta o quanto nós, enquanto sociedade, precisamos desoprimir o papel das mães. Em qualquer configuração familiar, ser mãe é uma experiência única. Uma rede de apoio é extremamente necessária, mas uma realidade distante para muitas. Que pensemos em como podemos ajudar, ao invés de apontar o dedo, de longe, das nossas zonas de conforto.