Aqui | 2024
É uma grande ironia que Aqui, novo filme de Robert Zemeckis (Forrest Gump, De Volta para o Futuro) flua como um piscar de olhos. A uma, porque trata-se de uma construção de planos fixos: a câmera permanece estática num único ângulo durante toda sua duração. A duas, porque, veja, discorre sobre a passagem do tempo em saltos gigantescos, de milênios à décadas, de décadas a anos, sobressaindo a finitude e insignificância do ser humano.
O diretor adapta a graphic novel homônima de Richard McGuire através de escolhas curiosas, que exaltam não só seu amor por um cinema piegas na abordagem de temáticas universais, cuja discussão parece sequer caber em nossa falta de (ironia, uma vez mais) tempo – vidas, mortes, ausências, famílias, perdas, dores, doenças – como também na cafonice de seu sentimentalismo. “Cem clichês nos emocionam porque sentimos que estão conversando entre si e comemorando uma união”, Umberto Eco já disse sobre o clássico absoluto Casablanca. Zemeckis não é Michael Curtiz e nem criou um clássico, mas o conceito veio a calhar quando tentamos compreender os motivos pelos quais Aqui nos atrai, nos toca e nos desconsola, em que pesem todas as suas breguices – o encontro delas funciona perfeitamente.
A adaptação da graphic novel permite que Aqui percorra saltos temporais não lineares como recortes picotados na tela que se abrem como portais para nos conduzir a períodos diferentes da história desse único lugar. A câmera imóvel de Zemeckis vai recortar e colar histórias e acontecimentos perante o tempo, retratando a passagem de pessoas e memórias nesse transcorrer, e a lente, claramente, é o observador de tudo, como nós. Esse espaço vai sofrendo modificações conforme as interferências geológicas, climáticas e humanas. De lar para dinossauros para uma natureza intocável, que se transforma em morada dos povos originários, que expulsos e assassinados perdem espaço para colonizadores, a natureza dando espaço a um ambiente urbano, para se tornar um típico bairro de classe média estadunidense. Veja-se que o lugar e suas alterações possuem, aqui, dois significados: a habitação privativa e a história de cada pessoa que por ali passa e a representação universal da história do Ocidente, e principalmente, dos Estados Unidos.
O contexto político é quase que acobertado pelas existências ordinárias a que vamos nos apegando. Cada família que habitou aquele espaço, ora natureza, ora casa, exatamente por sua ordinariedade, nos toca de alguma forma. São histórias comuns de pessoas, famílias e problemas comuns. Cada um dos recortes que representam uma história trazem consigo características de períodos muito específicos. O diretor atravessa a independência dos Estados Unidos, a invenção do avião, a Influenza, a Covid-19, a Segunda Guerra Mundial e seus efeitos nos microcosmos familiares, o baby boom, a mística feminina, o racismo, e, principalmente, a consolidação do capitalismo como catalisador das frustrações humanas, como controlador do rumo de vidas em prol da produção em massa, do consumo e do lucro.
A pieguice toma forma em cada canto de Aqui. A trilha sonora de Alan Silvestri grita emocionada. O apelo à nostalgia do romântico diretor, que reúne Tom Hanks e Robin Wright uma vez mais, em referência à Forrest Gump, vai atrair e emocionar os espectadores daqueles tempos. E dos nossos também. O efeito artificial de rejuvenescimento dos atores para que interpretassem seus personagens durante todo período da vida representada no filme causa estranheza, mas os imortaliza. A artificialidade, ainda, vai habitar o cenário natural, seu ápice no falso beija-flor que vai conectar passado e futuro com uma doçura muito cafona. Tudo é um jogo de gatilhos geradores de comoção. Contudo, o equilíbrio do sentimentalismo, o que não permite que ele descambe, vem justamente da sutil crueldade trazida pelo contexto político que evidencia uma sociedade prisioneira do capital, infeliz e doente em sua existência em razão do dinheiro. Há (e muita) dor nessa explosão romântica.
O que é a nossa vida, se não a união de recortes de momentos, não necessariamente lineares, que colecionamos para recordar? Que significam espaços e lugares em meio a essa coleção? Quando não há mais memória para recordar, o que permanece? A carne importa, de alguma forma? Aqui induz dor e melancolia quase que de forma imperceptível. Lugares permanecem, não importa o quanto sejam modificados. Pessoas, sopros de história diante do todo onipotente que é o tempo que passa, vão e vem.
Zemeckis é um romântico levemente atroz, um açucarado pessimista. Seu novo filme vai causar comoção e angústia simultaneamente. O que mais causa angústia, de fato, é a natureza do principal aprisionamento de pessoas que permanecem inertes perante sonhos e oportunidades: o capital, o dinheiro, o sistema que impõe profissões e metas de vida, simplesmente para que a produção se mantenha. Somos mera mão-de-obra, reféns em nossas próprias escolhas. Quando o cárcere é percebido, o corpo já não é mais o mesmo. E mais uma vida se passou.