Jurado Nº 2

Jurado Nº 2

Aquilo que a lei quer é precisamente que o juiz refaça inteiramente toda a história do acusado. O que supõe, primeiro de tudo, que o juiz tenha o tempo e a paciência suficientes de se fazer relatá-la para ele; depois deverá verificar o relato e deve habituar-se a assim fazer. Basta enunciar esta necessidade para que venha à luz o paradoxo, aliás, o absurdo do processo penal. Em realidade o juiz não tem a paciência e se a tivesse não teria o tempo para escutar a história do acusado, nem mesmo por resumo; e se escutasse por resumo não teria ainda escutado a história verdadeira, porque a história verdadeira é feita também pelas pequenas coisas as quais importam, para a consciência de um homem, muito mais que as coisas grandes.

Francesco Carnelutti, em As Misérias do Processo Penal

É louvável a forma como Clint Eastwood, no alto de seus noventa e quatro anos de idade, conseguiu condensar, em um único filme, tantos temas relevantes acerca das ciências criminais, fazendo-o de forma assertiva, objetiva e, o mais importante, sem desprezar a inteligência do espectador. Jurado Nº 2 traz temas como a Verdade e o processo penal, a perversidade do plea bargaining ianque, a dinâmica de um júri, os estigmas que envolvem um julgamento, as investigações e reconhecimentos malfeitos e, principalmente, o ponto mais sensível e que coloca em xeque a própria noção de um Estado Democrático de Direito: a condenação criminal de um inocente. Todos esses temas, comumente tidos como objetos de dissertações e teses no campo da pesquisa criminal, são colocados de forma inacreditavelmente hábil a serviço de uma narrativa que, por focar, essencialmente, em uma grande questão moral, tem o condão de interessar a pessoas das mais diversas faixa etárias e classes sociais.

É necessário, desde já, indicar que esse texto é escrito por quem, há anos, estuda com afinco muitos desses temas de cariz penal/processual penal que são expostos no filme e servem de background para o desenrolar da trama. Assim, tendo em conta esse fato, afirmo que é bonito ver como diversas dessas críticas jurídicas são expostas e suas aptidões a fazer ruir “certezas” que pessoas não ligadas ao cotidiano do sistema de justiça criminal possam sustentar. E aqui, me refiro à exposição clarividente que o judiciário é falho; que pessoas inocentes são condenadas a penas que vão “acabar com sua vida”; e que grande parte das pessoas que atuam no Judiciário não se dão conta (ou não querem perceber) da imensa responsabilidade que possuem.

Confesso sentir quase um êxtase em ver como tantas críticas ao sistema de justiça criminal, que sempre correm o risco de estarem restritas tão somente nos trabalhos acadêmicos e não serem lidas por estarem encasteladas no interior dos muros das Universidades, possam “ganhar” corações e mentes de espectadores que não são afetos a essas questões e fazer com possam refletir e questionar a perversidade que há em muitos aspectos do funcionamento do que seria a “Justiça”, mas que na verdade, é  o Poder Judiciário agindo. Justiça é outra coisa.

De forma sintética, tem-se que o longa traz-nos a história de Justin Kemp (Nicholas Hoult), homem branco e de classe média, que aguarda o nascimento de um filho e que é sorteado para servir como jurado em um julgamento criminal. Ao longo do julgamento, ele acabará por se questionar se quem cometera o delito ali julgado teria sido ele próprio ao invés do réu (que pode ser condenado a uma pena altíssima).

Durante o júri, em clara homenagem a 12 Homens e uma Sentença de Sidney Lumet, Eastwood vai mostrando as idiossincrasias de cada jurado que, por diversas razões, votam pela condenação do réu: do equivocado entendimento que é a Defesa que deve provar a inocência do acusado e não a acusação que deve provar a sua culpa (ou seja, a incompreensão de algo salutar à democracia, que é a presunção de inocência), até o fato de simplesmente se achar que o acusado é “um escroto” (piece of shit). Os jurados, em sua maioria, votam rapidamente sobre o destino de um cidadão, por questões pessoais, já que convictos, desprezam uma maior ponderação dos fatos. 

Aqui, imperiosa a citação de Francesco Carnelutti, advogado italiano que, em seu clássico As Misérias do Processo Penal, traz que “infelizmente, os juízes erram tanto mais facilmente quanto mais se acreditam seguros de não errar”.

A premissa, em si, é excelente e traz algo de comum aos últimos filmes do diretor ianque: o reforço do ideal liberal de liberdade e a busca pelo que seria a “Justiça”, reforçando a autonomia dos seus personagens. 

Como já indicado, Jurado Nº 2 traz uma série de temas que, por si sós, poderiam servir de objeto de teses e dissertações. Discorrer sobre eles, tão caros a quem milita diariamente no sistema de justiça criminal, como: Verdade e o processo penal, as questões morais que envolvem o trabalho do juiz (mas também do defensor), a justiça criminal negocial, o reconhecimento pessoal feito por “show-up”, as investigações policiais feitas com “visão de túnel”, os estigmas levados em consideração em um julgamento, etc. não parece ser a tarefa mais indicada de uma crítica cinematográfica, cabendo, como dito, em trabalhos acadêmicos de Direito. 

Para não incorrer em uma incongruência acerca do que esse texto pretende, sendo ele o que é, não é possível abarcar todas essas questões, que merecem, cada uma, ser objeto de reflexão por quem “é do Direito” e, também, por quem não é.

Trago isto porque há em mim uma sensação esquisita de “deixar passar” tanta coisa valiosa. Então, decidi focar em uma, o sistema negocial criminal ianque, por três motivos principais: perceber que tem sido pouco explorado em conteúdos sobre o filme; estar inserido em apenas uma única cena e logo nos minutos iniciais do filme, o que mostra a força do que foi proposto por Clint Eastwood; por fim, não posso negar que, em boa parte, é porque o tema foi alvo de estudos meus e grande parte das conclusões que exponho aqui, surgiram-me durante a feitura do meu doutorado em Direito.

Logo no início de Jurado Nº 2, há um breve conversa entre a promotora de justiça Faith Killebrew (Toni Colette) e o defensor do réu Eric Resnick (Chris Messina). Nela, há “o ovo da serpente”, a síntese de boa parte da perversidade que aflige o réu, naquele caso.  Eric Resnick aguarda para receber a promotora de justiça na entrada do Tribunal e pergunta o que ela “teria para ele”, de pronto, Faith responde “homicídio privilegiado, com sugestão de vinte anos de prisão, com quinze anos de cadeia e cinco de condicional”. 

Ao ouvir que aquele seria um “belo acordo”, a representante da acusação afirma que estaria disposta a “ignorar a reincidência” se o réu confessasse logo. Ele redargue com uma pergunta crucial: “e admitir algo que não fez?”. A promotora, inicialmente quase que com um tom jocoso, afirma “guarde isso para o júri, ou melhor, admita que ele é culpado e libere sua agenda” e, quando ouve que o réu quer o julgamento, afirma peremptoriamente: “então está desperdiçando o meu tempo e o tempo do seu cliente”.

Inicialmente, há de se indicar que mais de 98% dos casos penais ianques são resolvidos através de um “acordo” (o denominado plea bargain) firmado entre as partes. O julgamento por um júri é a exceção, por isso que se diz que o réu “quer o julgamento”, o que, em um primeiro momento, pode parecer estranho, afinal, todos merecem um julgamento propriamente dito, com a exposição das provas e análise delas pelos julgadores. Mas, na realidade americana, o “estranho” é querer fazer uso do seu direito ao julgamento e consequente produção probatória.

Na narrativa, o defensor vai “contra a maré”, com sua atuação servindo de exceção e perseguindo o que acredita ser a melhor opção para a efetiva defesa do acusado, cuja inocência realmente acredita. Contudo, na esmagadora maioria dos casos nos Estados Unidos, o destino do réu é selado em uma negociação em que se dispõe de liberdade e até mesmo de sua dignidade, com uma nefasta informalidade e desatenção à faticidade. Tanto é que a opção do acusado causa uma certa repulsa na promotora, que reclama diante da opção do réu de fazer uso de um direito seu.

Mas, para além disso, há a exposição, que pode soar muito sutil e até mesmo pueril (aos incautos), que diz respeito ao tempo que se “gasta” com o processo penal. A cena desvela uma das perversidades do sistema de “acordos”, muito usado nos Estados Unidos (e, sobretudo a partir de 2020, aqui também no Brasil): nestas negociações “todos” têm a ganhar, menos o réu, aquele a quem a avença deveria realmente importar. Com os acordos, os juízes passam a diminuir significativamente suas cargas de trabalho, além de contarem com um bálsamo às suas consciências no ato de julgar, afinal, haveria ali um “consenso”; os acusadores também experimentam uma diminuição substantiva de suas cargas de trabalho e, principalmente, conseguem condenações com grande facilidade, o que serve para colocar-lhes em uma situação de prestígio perante a comunidade (que a esmagadora maioria das vezes clama por mais punição), sobretudo em uma dinâmica em que os promotores são eleitos (diferentemente no Brasil, que são investidos no cargo após aprovação em concurso público). 

Assim, com o acordo o promotor condena mais (assim conseguindo mais votos para se eleger) usando um menor tempo e custo ao Estado, materializando a lógica neoliberal de eficiência que, enquanto própria racionalidade, já “colonizou” o Direito.

Não se pode esquecer, também, que a lógica do Sistema Negocial de Justiça criminal também beneficia o próprio defensor/advogado de defesa, afinal, seus casos acabam mais rápido, ele consegue ter mais clientes e, consequentemente, receber mais honorários e, por fim, mantém um bom relacionamento com promotores e juízes, todos irmanados pelo desejo de ter menos trabalho. Tem-se, então, o grande triunfo desse sistema de “negociações” na esfera penal: servir de instrumento dos interesses de quem, no processo penal, tem poder.

Nesta “simbiose burocrática” entre advogados, promotores e juízes, nesta perversa colaboração, há um ajuste para que, de alguma forma, haja uma coação para que o réu faça um acordo confessando o delito a si imputado. Jurado Nº 2 traz uma exceção, a partir da atuação de um defensor verdadeiramente interessado que a inocência de seu cliente fosse trazida, a despeito da pressão exercida pela promotora.

Quando o “tempo do processo penal” passa a ser o “tempo breve” há, invariavelmente, atropelos que fazem com que sejam desprezados elementos cruciais para o adequado acertamento penal, entre eles, o principal: a acurada análise das provas produzidas. Ocorre que, absolutamente inseridas em uma sociedade neoliberal, as pessoas não querem esperar o desenrolar processual e apostam em soluções rápidas, ainda que absolutamente perniciosas. 

Segundo a célebre frase de Voltaire “é melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente”. A grande questão moral do filme está em o personagem principal deixar um inocente ser condenado no seu lugar. Essa talvez seja a grande questão: o limite moral da atuação de alguém que atue no sistema criminal.  

Ao final de Jurado Nº2, o réu acaba sendo condenado à pena perpétua e a perversidade do sistema se expõe: sua situação seria melhor caso confessasse um crime que não cometeu, afinal, se aceitasse o acordo inicialmente oferecido, sua pena seria de vinte anos. Há justiça? 

Jurado Nº2 parece ter o condão de ser inesgotável. Suas temáticas funcionam como um novelo que, se forem puxados, dão azo para cada vez mais discussões, que fazem engendrar outras, fazendo com que a reflexão acerca da obra possa perdurar por tempo indefinido e sempre possa ser reavivada, seja em uma crítica, seja em uma tese de doutorado. Algo típico dos grandes filmes. Algo que só diretores geniais conseguem.

Nota:

Author

  • O representante do Pará no Coletivo Crítico que, entre o doutorado em Direito e os jogos do Paysandu, não dispensa uma pipoca para comer, uma Coca Cola gelada para beber e um bom filme para ver.

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