Alma do Deserto | 2024

Alma do Deserto | 2024

Uma Busca por Identidade

Àqueles que não se encaixam nos padrões sociais, infelizmente, resta uma árdua e desumana luta. Assumir-se com um gênero diferente do biológico é um ato revolucionário e libertário, é quando se decide viver por aquilo que realmente se é, aquém de qualquer classificação imposta. É preciso coragem para enfrentar tal estruturação milenar por aceitação e reconhecimento. Alma do Deserto, de Mónica Taboada-Tapia, é um documentário que segue a trajetória de Georgina Epiayu, mulher transgênero da etnia Wayúu dos povos originários da América, em busca da identidade feminina que lhe foi negada por seus conterrâneos e que encontra a barreira burocrática do governo colombiano.

Georgina tem 70 anos e, em algum momento que não fica muito claro no filme, teve seus documentos queimados em um incêndio criminoso provocado por vizinhos transfóbicos. Sua saga agora é fazer os trâmites necessários para emitir um novo registro, assumindo-se legalmente como mulher e podendo votar nas eleições que se aproximam. Diante desse contexto, vivendo em uma comunidade isolada no meio do deserto, ela transparece a melancolia de alguém que teve sua identidade tolhida pela sociedade e precisou se recolher em solitude. Taboada-Tapia é certeira na construção desta aura na personagem, fazendo grandes planos que destacam sua solidão e seu martírio sob o sol escaldante em longas caminhadas da aldeia até a cidade.

Mas, quando se trata da motivação para tais sentimentos, Alma do Deserto não consegue trazer intensidade para a narrativa, ou, pelo menos, demora-se a fazê-lo. Essas informações estão dispersas no meio do filme, o que acaba o tornando confuso. Sabemos que Georgina trava uma luta solitária, mas ainda não entendemos plenamente qual é. Na primeira vez que a vemos, ela está em um fórum recheado de pessoas. Seu objetivo é conseguir uma identidade nova, pois a que utilizava não era dela (havia encontrado esta na rua). Pensamos, então, que talvez seu problema seja a burocratização que o branco impôs a seu povo em troca do direito de voto. Por mais que seja uma questão pertinente e importante, logo vemos que existem outras coisas por trás das ambições de Georgina: a questão de gênero. Ela menciona que seu nome quando criança era masculino. Esperamos, agora, o surgimento de um novo tema de forte relevância.

Na sequência, quando retorna para seu vilarejo frustrada por não ter seu pedido atendido, ainda não há a esperada atenção ao novo dilema identitário que nos foi brevemente apresentado. Em conversas com sua vizinhança surgem diálogos que repetem a preocupação com o voto e reclamações sobre a burocracia governamental. E é assim durante toda projeção: são lapsos de informações que, muito vagarosamente, vão nos colocando a par do que se passou com Georgina, para além do documento e da eleição. Ou seja, a profundidade daquilo que está no cerne da questão nunca chega plenamente.

Isso é compreensível devido ao tom contemplativo que Taboada-Tapia escolhe para Alma do Deserto. É um tempo diferente do movimento urbano, uma distância muito grande e que sentimos através do lento caminhar da personagem. Entretanto, há o risco de transformar essa contemplação em vazio, o que seria, obviamente, desinteressante diante da complexidade dos temas propostos. 

Quando Georgina resolve voltar para sua terra natal e visitar seus irmãos antes de ir novamente em busca de sua identidade, a história vai se completando e ganhando em intensidade. É aí que descobrimos dados relevantes sobre sua transição de gênero, sobre sua cultura, sobre a violência que sofreu em seu habitat. Mas esse movimento é tardio e confuso.

Muito dessa confusão se dá por uma escolha contraditória da direção: o documentário é extremamente controlado. O posicionamento da câmera, as encaradas e planos fechados, as conversas, são elementos que divergem de uma naturalidade documental a tal ponto de gerar constrangimento em quem é filmado. São poucos os momentos em que as pessoas parecem à vontade diante da câmera e falam com fluidez. A própria Georgina não aparenta estar confortável, o que acaba gerando uma “má atuação” daquilo que é sua realidade, mas que está sendo encenada para a filmagem.

Alma do Deserto tem boas intenções e uma grande problemática a trabalhar, porém acabam se dissolvendo nesse engessamento e falta de clareza e profundidade. No fim, quando ela consegue sua identidade feminina e o direito ao voto, um letreiro surge para preencher a lacuna da narrativa. Então, entendemos que a questão não era o voto, mas sim seu reconhecimento como mulher pela sociedade branca que a colonizou e burocratizou sua existência.

Nota:

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