Aos Pedaços | 2020

Aos Pedaços | 2020

O tormento do amor

O nome de Ruy Guerra ecoa na história do cinema brasileiro. Diretor de Os Fuzis (1964), o moçambicano radicado no Brasil foi um dos responsáveis pelo Cinema Novo, explorando a estética da fome e da miserabilidade como fez Glauber Rocha. Com 89 anos à época de Aos Pedaços, que chega aos cinemas 5 anos após sua produção, Guerra parece distante daquele jovem aspirante por uma arte audiovisual puramente brasileira, trocando seu ativismo político por histórias cada vez mais introspectivas e experimentais.

Aqui, aos moldes absurdistas de Kafka, Dostoiévski ou Camus, o cineasta se interessa pela angústia de um personagem imerso em delírio. Eurico Cruz (Emílio de Mello) é atormentado pelo prenúncio de sua morte, um assassinato a ser cometido por uma de suas duas esposas, Ana (Simone Spoladore) e Anna (Christiana Ubach). Em diálogos internos e com a alucinação de um pastor religioso (Julio Adrião), Eurico tenta descobrir qual das duas irá matá-lo.

Esse ciclo de conversações que se repete durante toda a projeção não está a serviço de qualquer contextualização ou jogo de gato e rato como num filme investigativo. O texto pesadíssimo de Guerra e Luciana Mazzotti, que assinam o roteiro em conjunto, busca sempre o caminho do surrealismo poético, assumindo-se muito mais como teatro do que cinema. Pouco interessa o assassinato, mas sim a linha limítrofe entre amor e morte, como se para o cineasta o amor fosse carnívoro, corroesse por dentro seu personagem e deturpasse sua realidade.

Tudo o que vemos, na verdade, são os frutos da mente perturbada do protagonista em pedaços. Suas duas mulheres parecem fragmentos de um único amor que o afunda em desconfiança. As Anas alimentam os questionamentos de Eurico sobre amar e ser amado, enquanto o pastor funciona como um psicanalista que lhe remete ao pai. Todas as partes são o próprio Eurico que cada vez mais louco encontra subterfúgio no álcool e em impulsos suicidas.

Sobre isso, Ruy Guerra constrói belas imagens oníricas em uma fotografia em preto e branco com os atores performando para a câmera em movimentos bem marcados, como num teatro. Volta e meia os personagens se apresentam em monólogos, também como num teatro. Aliás, pouco resta de cinema para Aos Pedaços, sendo o filme uma experimentação da linguagem teatral capturada por uma lente. Guerra não explora a amplitude que o cinema poderia lhe fornecer, focando mais na iluminação de aura expressionista e nas atuações. Em alguns momentos a montagem lhe beneficia em prol do surrealismo, assim como um uso interessante da profundidade de campo. Essas são as melhores partes do filme, mas que logo são tomadas por verborragia cansativa.

Quando o texto nos dá um respiro, Aos Pedaços pode lembrar Estrada Perdida (1997), de David Lynch, no sentido do sentimento despertado pelo ciúme e pela desconfiança capaz de fragmentar identidades (as duas mulheres), ou a caracterização das Anas remetendo a Nastassja Kinski em Paris, Texas (1984), de Wim Wenders, se pensarmos na construção desse amor corrosivo. Por outro lado, estas são situações breves que logo são consumidas pela encenação hipersaturada. Fica a impressão de que a experimentação cinematográfica de Ruy Guerra ficaria melhor no teatro.

Nota:

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