Hora do Recreio | 2025

Hora do Recreio | 2025

Ao som de uma canção funk carioca empoderada, Hora do Recreio, a curiosa câmera de Lucia Murat passeia sobre dois espaços. Alterna-se entre uma galeria de arte que expõe pinturas que reproduzem pessoas negras, e acompanha, concomitantemente, a rotina diária de crianças, em sua maioria pretas, à caminho da escola, em destaque de suas mochilas grandes e seus cabelos crespos. Os cabelos, presos ou soltos, encontrarão seus semelhantes nas pinturas, e com muita energia a diretora vai costurar esse ritmo alternado, corpos pretos infantis e corpos pretos gravados na tela.

A agilidade com que Murat inicia Hora do Recreio acompanha a urgência do pensamento e do anseio daqueles que lhe interessam no documentário: crianças e adolescentes cariocas frequentadoras das escolas situadas nas periferias do Rio de Janeiro, locais onde o ensino público é sucateado, em que pesem os esforços descomunais dos professores, e onde as aulas são suspensas quando há operação policial que coloca vidas em risco em razão das trocas de tiros. A diretora vai dar espaço para que esses seres em formação falem sobre problemas inerentes às suas existências e classe social, por meio do direcionamento dos educadores que as instiga com questionamentos que vão se aplicar a todas elas. Experiências pessoais e familiares com racismo, violência de gênero em todas as suas formas, pobreza, abandono, falta de oportunidade de trabalho, são assuntos oralizados, explorados e que vão puxando um ao outro como um fio.

O contexto social conecta as temáticas e cada situação narrada encontra uma história semelhante vivenciada por uma criança e família diferentes. Denuncia-se pais agressivos e mães abandonadas, dependência química, cárcere privado, pais presos e traficantes, violência física, gravidez na adolescência, crianças que precisam trabalhar, mães que só reencontram a autoestima após livrarem-se de relacionamentos violentos e tóxicos. As histórias são únicas, mas se repetem cada qual em sua particularidade, e são compartilhadas como um desabafo necessário, como uma terapia em grupo que os fortalece e os mantém interligados. É bonito como grande parte das crianças anseiam por dar vidas melhores, principalmente, às suas genitoras, reconhecendo seus esforços, indignando-se com seus sofrimentos. O duríssimo enfrentamento de tudo que, desde tão cedo, são obrigadas a vivenciar, é iluminado pela educação, e essa é a ideia que os professores levam aos seus alunos.

É inevitável não pensar em Favoriten, documentário dirigido por Ruth Beckermann. No filme austríaco, a diretora escolhe acompanhar as crianças de uma única sala de aula na escola que lhe dá nome e que também é um bairro muito famoso por abrigar imigrantes. Enquanto em Favoriten as questões da imigração e da religião mostram-se condutoras naturais da narrativa e dos questionamentos das diferentes crianças que se encontram naquele espaço, em Hora do Recreio quatro escolas são alvo de análise pela diretora, que encontra crianças e adolescentes de idades diversas. Ao passo que os jovens na Europa saem em excursão para conhecer igrejas, mesquitas e templos, em representação à diversidade de fés compartilhadas no mesmo lugar, os professores brasileiros levam seus alunos para conhecer a Igreja da Candelária e falar sobre a chacina que lá ocorreu. As situações austríaca e brasileira são igualmente complexas em termos educacionais e morais, mas há um abismo entre elas no que se refere à qualidade de vida, de ensino e oportunidades.

Lucia Murat integra ao documentário as dificuldades de filmar naqueles locais. Muitas portas lhe foram fechadas por negativas de autorização da secretaria de educação estadual. Feito em 2023, Hora do Recreio também sai das escolas para deixar com que moradores falem sobre como se ajudam quando das operações policiais, formando uma rede de comunicação e apoio que os orienta a não deixar suas casas nessas ocorrências, muito embora, por vezes, não sair signifique não se alimentar, pois muitas crianças apenas fazem suas refeições nas escolas.

Permite, ainda, que um grupo de estudantes analise, sob uma perspectiva contemporânea, a obra Clara dos Anjos, de Lima Barreto, e a reproduzam em peça teatral. A diretora interage com os alunos, e abre a livre expressão artística deles através da dança e do teatro, criando relações expressivas que fazem da arte tão salvadora quanto a educação. Contudo, as diversas abordagens de Hora do Recreio, ainda que proporcionem a liberdade temática, finda por tornar o documentário um tanto desordenado, num vai-e-vem que é dinâmico, mas que prejudica pela desorganização daquilo que acompanhamos. Em uma hora e meia, passamos por quatro escolas, moradores locais, gravações de celulares, excursões externas, dança e teatro, e ainda encontra-se espaço para a inserção de figuras de mulheres negras que não são identificadas. A temática é urgente e muito precisa ser dito, parecendo que o anseio de não deixar nada de fora transpareça afobação na montagem.

Hora do Recreio é um trabalho corajoso em duplo sentido. Corajosas são as crianças que se abrem e expressam aquilo que as corrói por dentro, num compartilhamento que mostra a elas que não estão sós nessa lida. Corajosa é Lucia Murat, que busca dar voz a essas crianças e adolescentes, e faz reluzir uma bonita esperança na mudança que eles representam. Como uma diretora branca que trabalha um filme sobre pessoas negras, a abordagem do tema de forma exploratória ou sob o olhar da cosmética da pobreza seria um caminho fácil que ela evita se deixar levar. O que a conduz é a naturalidade, a honestidade e a inocência desses jovens que precisam tanto ser ouvidos, dando a eles o cinema como instrumento.

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