A Melhor Mãe do Mundo | 2025

Se mulheres pretas já ocupam a base da pirâmide social, mulheres pretas catadoras de recicláveis estão, nessa escala, posicionadas em lugares tidos como ainda mais desvalorizados: interseccionam-se fatores de gênero, raça, classe social e profissão numa sociedade que relega pessoas ao status de coisas. Essa mesma mulher, por sua estigmatização, é, geralmente, a primeira a sofrer violência. Mulheres negras são as maiores vítimas de violência doméstica e estupro. Em A Melhor Mãe do Mundo, novo filme de Anna Muylaert que fez estreia mundial na mostra Special Gala no 75º Festival de Berlim, Gal (Shirley Cruz) é, justamente, uma mulher preta catadora de recicláveis, mãe de duas crianças e vítima de violência doméstica, que vai dar voz a essas que, como ela, não encontram o mínimo sequer para serem protagonistas de suas próprias vidas e lutam duramente para livrarem-se de relações abusivas e mudarem suas realidades.
A representatividade de Gal nas telas é, de fato, o maior presente de Anna Muylaert em A Melhor Mãe do Mundo. Mulheres como ela passam a se verem e serem vistas, e histórias como as suas são refletoras de uma violência cíclica, normalizada, de realidades que, vistas de fora, são de difícil compreensão: por que uma mulher vítima de violência doméstica persiste num relacionamento abusivo? Quais os motivos que a impedem de se libertar dessas prisões? A solução que parece simples (ir embora) torna-se quase impossível de ser praticada. A violência física geralmente vem acompanhada de outras formas muito mais complexas de serem enxergadas, em destaque, a psicológica, a patrimonial e a moral. Falando de uma realidade brasileira, estamos tão acostumadas a sermos violentadas que existe uma tolerância e um esforço social para que não percebamos determinadas situações. Ele é um homem trabalhador, ele coloca dinheiro em casa, ele é pai dos meus filhos, eu o amo, são algumas das muitas justificativas que impedem que mulheres se visualizem em suas próprias misérias.
Muylaert vai nos apresentar Gal numa típica situação em casos como tais: durante a realização de um boletim de ocorrência contra seu agressor, o marido Leandro (Seu Jorge), ela sequer consegue responder com clareza àquilo que lhe é questionado, e vai, de alguma forma, se culpabilizar pela violência sofrida. Durante o longa, a autoconsciência de Gal não será uma crescente, mas sim, uma maré de altos e baixos. A personagem vai lutar e também vai ceder, mas como uma brava leoa, acima de tudo, buscará defender e proteger seus filhos de qualquer mácula, numa espécie de A Vida é Bela brasileiro, onde ela sai de casa, passa a viver em situação de rua com sua carroça de recicláveis, e o esforço será o de imunizar as crianças sobre a dureza daquela realidade e tentar tornar tudo uma grande aventura.
Shirley Cruz amplifica a garra de Gal de forma impressionante. Ela carrega nas costas a carroça com os filhos e os puxa com uma força que parece não ser sua, como uma mãe que transporta o mundo, e como se esse mundo fosse a extensão de seu útero. É impactante assisti-la subindo uma ladeira nesse movimento sobre humano ao som de Cabeça Dinossauro, da banda Titãs.
A ideia de evidenciar o modo como a protagonista busca contornar tudo que lhe acontece em prol da blindagem dos filhos torna A Melhor Mãe do Mundo perigosamente romantizado demais. Na decadência da personagem, quando ela corre o risco de retornar ao ciclo de violência, é importante demonstrar o quanto as pessoas ao entorno colaboram para a naturalização do machismo e toda brutalidade que o acompanha, como se o único caminho possível às mulheres fosse a submissão. Entretanto, a grande aventura que se transforma o ato de morar nas ruas com duas crianças é compreensível até certo ponto da narrativa, como única saída encontrada por essa super mãe que é Gal, mas se excede ao fazer da vida nas ruas um tanto cool, quando os próprios filhos clamam pelo seu retorno. Há uma linha tênue entre a crítica e a aceitação, e Muylaert parece ultrapassá-la. Tanto assim o é que não sentimos qualquer alívio quando, retornando à situação de rua, Gal e seus filhos milagrosamente conseguem uma salvação não para tirá-los da desumanização, mas para levá-los ao jogo do Corinthians.
A Melhor Mãe do Mundo certamente merece estourar a bolha dos cinemas para ser amplamente discutido como uma obra de relevância social e de representatividade de gênero, raça e classe social, que sirva de meio e objeto de estudo para fazer refletir não só o modo como a sociedade enxerga pessoas em situação de rua, como também para seu processo de compreensão e humanização. Ainda, mais do que um enxergar por fora, Muylaert proporciona um descortinar interno, permitindo que pessoas tão guerreiras quanto Gal possam se ver nas telas de cinema, e, de algum modo, fortalecerem-se e sentirem-se representadas. E isso importa, muito.