Duna: Parte Dois | 2024

Duna: Parte Dois | 2024

O adormecido acordou

Há milênios, a incerteza da vida nos leva à mitologia e à religião. Costuma-se dizer que a fé “move montanhas”, pois ela é capaz de mobilizar multidões, pautar a vida de sociedades inteiras e instigar revoltas motivadas pela esperança em dias melhores, em respostas. Sem muito esforço, também podemos constatar que a história da violência humana subverte o poder ativo da crença nos mais hediondos estratagemas políticos, em um dos mais potentes sistemas de opressão, tanto no passado quanto ainda hoje. A complexidade desses elementos sociais e históricos está presente em Duna: Parte Dois, onde o cineasta Denis Villeneuve acerta os rumos da primeira parte sendo muito mais cauteloso com o imenso universo fantástico dos livros de Frank Herbert.

Se anteriormente escrevemos que Duna: Parte Um peca pela falta de profundidade dada aos personagens da saga, isso não acontece aqui. A opção da produção em contar a história, a princípio, como uma trilogia já desacelera a narrativa imensamente em comparação com a versão de David Lynch, de 1984. Ainda assim, Villeneuve acabava acelerando os eventos e não dando tempo para que o espectador pudesse criar vínculos com os agentes do enredo. Mas, como justificamos naquele mesmo texto, mesmo incorrendo neste erro, o diretor parecia ter consciência de que tinha em mãos o que chamamos de filme-prelúdio. Agora, após a segunda parte, fica ainda evidente a ideia de que aquela obra serviria como introdução para esta, onde há uma preocupação muito maior em mergulhar nos dilemas do jovem Paul Atreides (Timothée Chalamet).

Após o golpe aplicado pela Casa Harkonnen, em conluio com o Imperador do Universo (aparecendo pela primeira vez na interpretação de Christopher Walken), o clã Atreides é massacrado em Arrakis. Paul e Lady Jessica (Rebecca Ferguson) conseguem fugir e encontram refúgio entre os rebeldes Fremen liderados por Stilgar (Javier Bardem). Daqui parte a continuação: Paul é confrontado diretamente com a ideia de que seria ele o messias salvador dos oprimidos. Entretanto, como relatamos, há uma ligação complexa entre fé e política no imaginário daquele povo e que precisava ser melhor trabalhada pelo roteiro.

Não se trata de aceitar a profecia e se estabelecer como o líder predestinado, mas sim de compreender os embates apresentados no primeiro filme, as motivações por trás dos ataques e as articulações das chamadas bruxas videntes da irmandade Bene Gesserit. À medida que Paul toma consciência da participação delas e, principalmente, de sua mãe na modulação da esperança universal, também ganhamos informações preciosas que faltavam na obra anterior. Por exemplo, a misteriosa Reverenda Madre Mohiam (Charlotte Rampling), representante máxima das Bene Gesserit por ser a conselheira do Imperador, revela-se como peça importante no desenrolar da profecia, tendo seus interesses políticos expostos.

É nesse contexto que se abre um espaço muito maior para a atuação de Ferguson, estabelecendo-se como arqui-inimiga de Mohiam. Jessica vai aos poucos abandonando o medo para ser cada vez mais convicta dos rumos a serem tomados pelo filho. Estabelece-se um interessante jogo entre fé e razão que envolve mãe e filho, e que também acaba por trazer para o centro de Duna: Parte Dois uma personagem outrora apagada: Chani (Zendaya), o verdadeiro amor de Paul. Anteriormente como narradora pontual e parte dos sonhos de Paul, Chani entra de vez como o elemento desestabilizador para o jovem messias que agora precisa relutar entre o amor e seu destino.

O mundo dos Harkonnen também ganha relevância. Barão Harkonnen (Stellan Skarsgård) sobrevive ao atentado de Duque Leto Atreides (interpretado por Oscar Isaac na parte um) e coloca seu sobrinho Rabban (Dave Bautista) como governador do planeta Arrakis para exercer a função de exterminador dos Fremen. O Barão quer eliminar todos que se rebelem contra seu domínio e o façam perder a produção da tão importante especiaria. Quanto mais entramos na obstinação desse clã, mais vemos sua sede por sangue. Ao povo Fremen dão a alcunha de ratos, e recaem em ira enquanto veem suas máquinas sendo destruídas pelos “ratos rebeldes”. Desse ódio transparece o quanto os Harkonnen são ineptos, retratados até com infantilidade. O exemplo disso é a entrada de Feyd-Rautha (Austin Butler) na história: irmão de Rabban que acaba por o substituir no trono de Arrakis após seu fracasso na extração da especiaria. Suas ações emergem da mais brutal violência gratuita, com a mesma facilidade com a qual é seduzido por Lady Margot Fenring (Léa Seydoux), uma Bene Gesserit próxima de Mohiam enviada para testá-lo.

Toda essa ampliação permite que Denis Villeneuve explore muito mais o universo dos livros. A saga cresce visualmente quando apresenta diferentes mundos e seus habitantes, esbanjando belíssimos desenhos de produção, figurinos e fotografia, como é o caso do planeta em preto e branco onde assistimos a luta de gladiador de Feyd-Rautha provando a sua suposta bravura, ou então o lugar onde vive o Imperador e a sua esplendorosa nave quando pousa em Arrakis.

O grande mérito de Duna: Parte Dois é o encaminhamento que dá a um problema ético da história: a salvação do povo oprimido aconteceria pelo herói branco colonizador. Afinal, Paul Atreides é descendente de uma das mais importantes Casas Maiores, as dinastias que governam os planetas do universo. Abastado de toda forma, ele não conhece o verdadeiro sofrimento e o que representa ser um Fremen. Na primeira parte, ele é claramente um sujeito ingênuo quando pensa em si mesmo como o predestinado redentor. Mas é a condução cautelosa de Villeneuve e a interpretação primorosa de Chalamet que traz honestidade à trajetória de Paul. Ele cresce, cria maturidade, torna-se Paul Muad’Dib Atreides, um Fremen adotivo, guerreiro Fedaykin da mais alta estima, aquele capaz de dar a vida pelos seus, o que consegue domar e montar um verme (Shai-Hulud). Assim como Stilgar em sua crença fervorosa, vemos o nascimento do Lisan Al-Gaib, o salvador de que falam as Escrituras.

Duna: Parte Dois vai muito além de Duna: Parte Um, até mesmo sendo capaz de elevar a potência deste, se levarmos em conta a história como um todo: o filme-prelúdio que se estende e se joga no épico mundo intergaláctico repleto dos mesmos dilemas milenares da humanidade, mitologia e religiosidade aprofundadas. Não apenas isso, mas também a sabedoria de Denis Villeneuve em contextualizar politicamente seus personagens, colocando crença e política como dois pólos da mesma moeda num perigoso jogo que existe desde os primórdios da História e permanece no futuro 10.000 anos à frente de nós em Duna.

Nota:

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