Kontinental ‘25 | 2025

Kontinental ‘25 | 2025

Conhecedores dos filmes de Radu Jude já esperam dele um cinema anticapitalista. A ortodoxa Romênia, sua terra de origem, é palco para extensos debates fílmicos a respeito das relações de trabalho, de poder, de propaganda, consumo e classe social, expondo, com uma ironia e humor que lhe são muito característicos, e personagens que lidam com situações das mais inusitadas, as hipocrisias de seu país, extensíveis ao mundo. Em Não Espere Muito do Fim do Mundo, através de uma personagem faz-tudo que labora mais de 12 horas por dia e precisa convencer vítimas de acidente de trabalho a filmarem propagandas de segurança no trabalho, traz o fim do mundo como a realidade do capital que consome e suga o trabalhador. No divertido Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental, uma professora de ensino infantil sofre as consequências do vazamento de um vídeo erótico íntimo na internet numa longa reunião de pais em período pandêmico, que vai questionar os limites da divisão do labor e da vida comum, se é que há. 

No seu mais recente trabalho, Kontinental ‘25, que integrou a mostra Competitiva do 75º Festival de Berlim e recebeu o Urso de Prata de Melhor Roteiro, o diretor, que filma com Iphone 15, novamente vai nos dar uma protagonista feminina, Orsolya (Eszter Tompa), uma oficial de justiça que precisa despejar um homem de uma propriedade por ele ocupada ilegalmente. Com auxílio policial, buscando garantir que tudo seja feito conforme a cartilha e sem abusos, enquanto aguarda que o homem guarde seus pertences e saia do local, ao retornar, encontra-o morto – o homem comete suicídio fazendo uso dos fios de um aquecedor. Sentindo-se culpada, a personagem vai lidar com dilemas morais íntimos, bem como com as consequências da tragédia, que torna-se conhecida publicamente.

Kontinental ‘25 usa os primeiros minutos de seu filme para causar uma interação um tanto curiosa, não com sua protagonista, mas, inicialmente, por aquele que será por ela expulso do local onde mora. O homem em situação de miséria busca alimento nas lixeiras de um parque com grandes e bizarros bonecos de dinossauro que se movem e emitem sons. Até que compreendamos o que nos está sendo mostrado, ficamos com o impacto da imagem desse homem desalinhado, revirando a lata de lixo, sem dar a mínima ao (possivelmente) tiranossauro-rex ao fundo. O personagem, então, sai do parque para adentrar as ruas e vagar por mesas de restaurantes ao ar-livre, como um pedinte de oportunidade de trabalho. Percebemos, logo, que sua figura, tal como as das pessoas em situação de rua, é um incômodo social, uma presença que não é bem-vinda nos espaços. 

Kontinental Boutique é o hotel onde tal figura, que descobrimos ser um ex-atleta famoso, reside de forma ilegal nos porões. Nas ruas, ele é aborrecimento. No hotel, ele é um embaraço. A culpa de Orsolya por sua morte logo vai sendo substituída por convicções confortáveis: o expulso era alcoólatra, era insano, são coisas que acontecem, não há qualquer responsabilidade legal dela no caso, ela fez o que pôde. O ato de contar e recontar a mesma história diversas vezes, para pessoas diferentes, e ouvir, assim, palavras de consolação das mais variadas, fazem a personagem ir se cercando de um autoconvencimento bem-vindo sobre sua própria bondade, livrando-se, aos poucos, do dilema que sofre.

Radu Jude, assim como em suas obras anteriores, repete o uso frequente de planos longos e fixos acompanhados de diálogos regulares e quase que incessantes, permitindo, assim, que atentemos para elementos políticos debochados e nada sutis que engrandecem a crítica que busca fazer. Em uma das primeiras vezes que a personagem vai narrar o ocorrido, a vemos falando, sentada no sofá, a TV mostrando propagandas apelativas, sem, entretanto, visualizarmos a quem ela se dirige. O seu interlocutor entrará em tela momentos depois, tempo suficiente para captarmos as ironias que o diretor faz questão de inserir.

A relação de causa e consequência abordada em Kontinental ‘25 é, também, em repetição aos anteriores aqui mencionados, uma reação em cadeia, um acontecimento que vai levando a outros, banais, ordinários, mas que vão gerar, de algum modo, uma repercussão social em algum nível. O suicídio do ex-atleta causa certa comoção popular que expõe e gera, contra a oficial de justiça, uma onda de julgamentos e xingamentos, a colocando como inimiga da pobreza. Isso a faz temer, porém, mais do que isso, a faz lidar melhor com o sentimento de culpa pela mudança de foco das discussões.

A culpa, o desprezo pela pobreza, a propriedade privada, o capitalismo e por fim, o cristianismo e o pecado seletivo, são todos componentes interconectados que ditam um modo de vida que Kontinental ‘25 vai condenar com sarcasmo. A absolvição final da personagem virá do padre, de quem ela buscará conselhos religiosos sobre a situação do ex-atleta, após, ironicamente, viver uma aventura sexual com um ex-aluno. O discurso de Radu Jude é sempre muito claro e eficaz. Porém, a repetição da fórmula torna, em seu novo filme, o debate quiçá um pouco exaustivo e direto demais, o que está muito longe de enfraquecer a obra, mas, a longo prazo, pode prejudicar pela insistência do discurso.

Nota:

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