On Vous Croit | 2025

Por Ezequiel Silva
Me interessa pensar no fato de que, por vezes, a representação da mãe no cinema é cercada de equívocos e generalizações. On Vous Croit, que figura na programação do Festival Internacional de Cinema de Berlim deste ano, em uma mostra paralela a competitiva dedicada a longas-metragens ficcionais de cineastas estreantes, a Perspectivas, pode até apresentar algumas das vicissitudes acima mencionadas na medida em que insiste em uma dramatização exaltada, enquadramentos sufocantes e planos-sequências. Todavia, o primeiro filme da diretora Charlotte Devillers faz-se, no mínimo, oportuno, ao passo que anima uma reflexão mais atenta sobre a questão. Sem a pretensão de avançar com tal estudo, o qual, se ainda não foi realizado, espero que um dia o seja, detenho-me única e exclusivamente na imagem que, em meio aos ruídos ouvidos na escuridão dos créditos iniciais, preenche a tela à minha frente: o close-up da atriz.
A protagonista é esta mulher que, logo na sequência de abertura, está lutando e vai literalmente ao chão na tentativa de conseguir embarcar o seu filho caçula em um trem. Sem demora, ela me arrasta junto deles neste turbilhão. O relacionamento entre a mãe e o menino é mais complicado do que aparenta ser, e isso fica evidente na cena em que eles são detidos ao passarem por um detector de metais, por conta de uma pequena faca que o garoto carregava escondida consigo. O que há por trás dessa família? É exatamente o que me intriga ao vê-la em seguida, como se fosse uma leoa guardando seus filhotes, pois há ainda a filha mais velha, uma adolescente pintada com todas as cores de rebeldia possíveis, nesta hiper-iluminada e inóspita sala de espera do fórum no qual eles se encontram.
On Vous Croit lança mão de pouco mais de um terço de sua duração para encenar uma audiência frente à juíza, que será a responsável por decidir se as duas crianças devem ou não serem separadas da mãe, a qual é acusada pelo ex-companheiro de, entre outras coisas, não ser mais psicologicamente capaz de cuidar dos filhos, o que é endossado pela maneira como ela é representada. Durante as argumentações jurídicas das advogadas de acusação e defesa, assim como do defensor que se faz presente para supostamente salvaguardar o interesse dos menores, deixo-me levar mesmo é pela imagem da mulher que está sofrendo para defender uma determinada verdade como se não houvesse amanhã. Verdade essa que, conforme sugere o último plano, não se trata de sua verdade enquanto mãe e ex-companheira, mas sim da verdade das crianças, de seus filhos. Se assim a entendermos, estaríamos diante de uma cena cuja clareza é capaz de ressignificar toda a jornada e, consequentemente, a própria forma vacilante com a qual a protagonista é representada. A sequência final, à semelhança da cena que abre o longa-metragem, é uma externa, mas uma externa que agora permite a entrada de luzes um pouco mais quentes. É quase como se a tão aguardada exposição da perspectiva dos filhos sobre o conflito necessitasse dessa mudança de filtro, alterando, com isso, ainda que sutilmente, o regime representativo da obra.
Finalmente, quando a luz da sala de cinema é acesa, não sabemos, verdadeiramente, se o abuso cometido pelo pai das crianças, o qual está sob investigação, aconteceu ou não. Por mais que a escalada de tensão imposta pela narrativa, assim como a máscara de mergulho e, sobretudo, aquele snorkel trazido pelo homem para presentear o filho, acabem despontando como um atestado de que ele é, de fato, culpado. Tal qual a juíza, que ficará a sós com o dever da decisão em seu gabinete envidraçado, o espectador é deixado sozinho face aos números oficiais de crianças vítimas de abuso sexual por parte de familiares que são apresentados antes dos créditos finais. Os dados que sublinham a urgência deste assunto, que não há como ser encerrado pelo universo fílmico, pois não se limita à ficção.
À economia do projeto, rodado em cerca de 30 dias, atribui-se a culpa pela modesta composição e plasticidade, marcadas por uma iluminação de pouco contraste que aposta na cor branca e em reflexos de espelhos. Por sua vez, essa palidez acaba contrastando violentamente com a latente perversidade do enredo, e a banda sonora, repleta de sons estranhos, opera no mesmo sentido, como, por exemplo, ao inserir roncos, eu diria intestinais, antes da sequência na qual a mãe precisa correr às pressas para o banheiro. Cena fortuita e um tanto quanto questionável, pelo menos até percebermos que ela é uma referência à complicação enfrentada pelo filho. Outro elemento sórdido a divergir da forma é o presente entregue pelo pai: a máscara de mergulho e o snorkel surgem como um signo fálico, que escapa brutalmente do registro monótono impresso até então por On Vous Croit.
O filme também não deixa de ser sobre esta mulher e mãe específica, Alice, mais ainda sobre a mulher que a interpreta, a qual se chama Myriem Akheddiou, atriz reconhecida por aparições discretas e papéis coadjuvantes em alguns trabalhos dos irmãos Dardenne. Agora, com On Vous Croit, ela ascende ao primeiríssimo plano… mas não sem antes ter de brigar para alcançar essa posição, impondo-se contra o homem, fazendo-o engolir o snorkel. É assim que ela conquista seu lugar enquanto protagonista. Sua presença neste longa-metragem, portanto, esboça o que poderia muito bem ser a história de tantas outras atrizes, as quais habitaram durante boa parte de suas carreiras o fundo dos enredos até, finalmente, receberem o devido reconhecimento – a despeito de tal reconhecimento vir arrolado do convite para interpretar mais uma dessas supermães que vemos no cinema.