Wicked: Parte I | 2024

Oz é aqui
É necessária uma ingenuidade infantil para acreditar na plenitude de uma vida pacífica e bela além do arco-íris, assim como Dorothy em O Mágico de Oz (1939). Sua jornada pela rua de tijolos amarelos é, na verdade, a quebra dessa idealização, quando nem mesmo o mágico é realmente mágico. Mas há uma lição singela ao fim: valores como razão, sensibilidade e coragem nascem das ações de cada indivíduo para alterar a realidade em que vivem. É como se Dorothy criasse em si mesma o arco-íris e ressignificasse seu retorno ao lar. No clássico filme de Victor Fleming e King Vidor a proposta não é evidenciar as implicações políticas dessa crença ou sua complexidade, ao contrário de Wicked, de Jon M. Chu, que conta os eventos antes deste. Oz não é mais um pano de fundo para o crescimento psicológico de Dorothy, mas um intrincado mundo metafórico ao nosso, repleto de estruturas sociais e articulações nefastas além de qualquer maniqueísmo.
A existência de uma Bruxa Má do Oeste ou da Bruxa Boa do Norte no fantasioso universo de Wicked é explicada a partir de critérios sociológicos palpáveis em nosso contexto. Chu não cai na armadilha do bem contra o mal das fábulas infantis, mas investe seu esforço em desmistificar essas classificações, fazendo com que o debate seja, justamente, sobre os rótulos sociais da bondade e da maldade. A suposta malvadeza de Elphaba (Cynthia Erivo) é permeada por sua história de opressão e abandono; enquanto a beatitude de Glinda (Ariana Grande) é consequência dos privilégios de sua branquitude.
Iniciar o filme com a morte de Elphaba sendo celebrada euforicamente pelos Munchckins é a grande ironia da narrativa. A festa nos sugere que um grande mal acabara de ser derrotado, libertando o povo da dominação da Bruxa Má. A chegada triunfal de Glinda como representação da benevolência e símbolo de tal celebração nos indica apenas os dois rótulos das personagens. Ninguém ali, além de Glinda, conhece realmente as motivações de Elphaba ou as verdadeiras intenções da Bruxa Boa do Norte. Os eventos que se seguem são suas reminiscências e um mergulho em seu ressentimento.
Nessas memórias conhecemos os fatos sobre Elphaba. Nascida renegada por conta do tom verde de sua pele, ela cresce e se acostuma com a discriminação que sofre. Acaba desenvolvendo o dom da magia, mas sempre oriundo da dor e da raiva por seu abandono. Preterida pela irmã, Nessarose (Marissa Bode), o acaso a coloca na famosa Universidade de Shiz, onde seus poderes impressionam a professora de feitiçaria, Madame Morrible (Michelle Yeoh) que logo a torna sua protegida. Pela primeira vez Elphaba se sente acolhida, mas nada disso é real. Sua diferença aos demais só é aceita naquele ambiente elitista à medida que seu poder possa ser manipulado para os interesses obscuros de Madame Morrible.
É com esse mesmo oportunismo que Glinda se solidariza com Elphaba. Estar perto dela é a chance de ser vista como “boa moça” diante dos colegas de universidade. O tom cômico adotado por Ariana Grande é perfeito para estabelecer a boçalidade da branquitude diante daqueles que são marginalizados. Seu icônico movimento de cabelo, seu narcisismo, seu puritanismo, tudo corrobora para a construção de uma personagem que representa os privilegiados sociais. Tal solidariedade só existe enquanto a mulher de pele verde serve como instrumento para mais benefícios, assim como o capitalismo contemporâneo utiliza a representatividade para vender suas mercadorias.
Se Grande tem essa falsa graça, Cynthia Erivo carrega, inicialmente, as expressões da melancolia de quem internalizou uma culpa inexistente. Elphaba é ciente de sua condição e do modo como os outros a enxergam, tanto que é fácil para ela repetir o discurso justificando sua cor àqueles que se assustam com sua presença. Seu arco dramático ganha intensidade quando alcança um outro nível de consciência: a política. Presenciando a opressão que os animais sofrem em Oz, Elphaba começa a perceber que sua exclusão faz parte de uma estrutura muito maior. Mas, mesmo assim, ela desliza em uma quase inexplicável ingenuidade ao se aproximar de Glinda.
A consciência completa só chega na última cena de Wicked, quando, diante das articulações entre o falso mago (Jeff Goldblum) e Madame Morrible, percebe-se como objeto. Surge também uma nova frustração que é a falsa amizade de Glinda que, mesmo demonstrando empatia com o sofrimento de Elphaba, não hesita em trocar tudo pelo status que almejava desde o início. Então, nasce a Bruxa Má do Oeste, fruto da indignação, da dor e do descaso.
As camadas muito mais profundas e atualizadas que O Mágico de Oz são os grandes méritos de Wicked. Contudo, o filme se sabota ao negar sua própria potência. Mesmo que carregado de ideias boas e com a competente dupla de atrizes principais, Jon M. Chu parece render-se ao mesmo mercado oportunista que critica. A imagem não se filia com as intenções, pois adere à demanda realista de um cinema blockbuster genérico. O fantástico mundo de Oz perde suas cores para assumir uma penumbra que descora os cenários. O que poderia servir como artefato de afirmação de uma aparência que prevalece e esconde as entranhas de uma oligarquia, um colorido american dream, torna-se uma imagem opaca já vista e exaurida pelos filmes de herói e de terror atuais.
O fato de Elphaba abandonar tão facilmente sua desconfiança naquele meio branco que é a Universidade de Shiz e não perceber os interesses de Glinda quando se aproxima é um deslize muito grande, bem como o flerte com Príncipe Fiyero (Jonathan Bailey), símbolo da elite que sustenta a estrutura que a oprime há tanto tempo.
Wicked terá uma segunda parte que deve explorar a vingança de Elphaba contra a oligarquia de Oz, até sua morte após as perseguições contra Dorothy e seus amigos. Aqui, tem-se um filme musical interessante no sentido político que apontamos, mas que não consegue escapar a um encaixotamento mercadológico comum. O mundo de Oz, tão vibrante na versão da década de 30, ficou escuro e fraco.