Living the Land | 2025

Living the Land | 2025

Living the Land, de Huo Meng, que recebeu o Urso de Prata de Melhor Direção no 75º Festival de Berlim, não poderia carregar melhor título. A relação do ser humano com a terra e o modo como ela se transforma com o tempo e acompanha as mudanças sociais são sintetizadas pelo diretor pelo recorte de um período específico da vida na China, o início da década de 1990, quando o avanço tecnológico remodela radicalmente o estilo de sobrevivência das comunidades rurais, e um êxodo se inicia rumo às cidades. Gerações familiares se encontram naquele vilarejo interiorano retratado pelo filme, que vive da terra e que possui plena consciência do retorno à essa mesma terra com a morte. 

Nascimento, vida e morte. Casamentos, lavores e funerais. Os ciclos naturais e mandatórios que resumem o que é viver em sociedade vão acontecendo e se somando na comunidade, que reúne bebês, crianças, adultos e idosos cuja idade sequer é conhecida. Dentre as tantas fases retratadas, Huo Meng vai dedicar longo tempo de tela a um funeral, quiçá aquele que mais simbolicamente vai dar significado ao vínculo terrestre que o Living the Land quer realçar. O ritual congrega todas as gerações que coexistem naquele local, e os papeis desempenhados por cada um, conforme o gênero e o tempo de vida, são claramente demonstrados. As mulheres adultas, as que numa família seriam intituladas de mães e tias, são as que performam o sofrimento e a dor pela morte ali homenageada. Há um exagero escandaloso, uma necessidade de externar, através de gritos e lamentos audíveis e visíveis, sentimentos quase que obrigatórios e demonstrados de forma muito teatral – uma das personagens lamúria (sem lágrimas) em cima do caixão, clamando, aos berros, ao morto: “Por favor, levante!”. É trágico, é cômico, mas representativo de um povo. Nota-se que esse próprio calvário faz parte de um costume, uma tradição. Aos homens, ali, compete carregar a esquife. Cabe aos mais novos aprender com os mais experientes. 

A consciência dos estágios existenciais é também aprendizado das crianças. Ao fim do funeral, é figurativo que a terra jogada sobre o morto seja lançada sobre as pessoas ao redor. Num diálogo familiar, o ancião analisa os espaços já reservados aos próximos falecidos, nomeando o que pertence a cada membro da família, numa ordem de falecimento pré-determinada (como se isso fosse possível). O mais jovem, um menino novo que ouve a conversa, questiona: “E eu, onde serei enterrado?”.  Veja-se que o relacionamento entre a terra e a sobrevivência é indissociável, significando, outrossim, o desfecho da vida.

Huo Meng refletirá, com uma câmera passeante, a conexão de “viver a terra” e a pequenez do ser humano em comparação à infinitude dos cenários naturais. O diretor vai dar destaque aos tons de verde da grama que alimenta a população local e que, outrossim, cobre os túmulos, fazendo uso frequente dos travellings para acompanhar os personagens nos imensos espaços paisagísticos, dando, ainda, sentido expressivo ao pós-colheita do trigo devastado pela chuva, remetendo, em alguns momentos, a O Sacrifício, de Andrei Tarkovski. Lidando com uma grande quantidade de personagens, vai contornar esse volume sem se perder, empregando o dispositivo de filmagem de modo circular para ressaltar a presença dos membros daquele corpo social, não para que saibamos, exata e individualmente, quem são, mas destacando suas presenças como reforço do trabalho coletivo que os envolve.

Se o êxodo rural é reflexo de uma crise social enfrentada pelo país, é evidente que as especificidades tradicionais daquele lugar não serão de todo positivas, ou seja, nem sempre representarão um modo de vida harmônico e idealizado. São muitos os problemas que o Huo Meng vai retratar para demonstrar a real necessidade de atualização e mudança em alguns aspectos. A uma, vamos tomando, de modo pouco expositivo e focado nos acontecimentos, consciência de que há um controle de natalidade estatal atuando e refreando a vida sexual e ginecológica das mulheres, o que vai gerar, contra elas, violência. É de uma contradição dolorosa que entendamos aquela coletividade como, notoriamente, um microcosmo matriarcal, já que a figura (e imagem) extremamente poderosa da anciã guarda uma posição de liderança e aconselhamento, ao mesmo tempo e ao passo que mulheres são forçadas a se casarem em contextos de opressão e exigência de um comportamento obediente, onde opera o comando masculino. A cena de um casamento que ocorre, em específico, é assustadora – a noiva veste vermelho e carrega um olhar apavorado, enquanto o futuro marido e outros homens que o acompanham a assediam fisicamente para tirá-la de dentro do carro que ela não consegue sair. 

O fechamento do ciclo de mudanças, o encerramento de uma geração, é trazido em Living the Land pela morte da anciã e a doce relação que ela vai guardar, ao fim, com seu bisneto – dois extremos geracionais que se conectam para deixarem-se ir. Numa atmosfera de transe, mantida pela lentidão dos acontecimentos, o menino come docinhos com a idosa, doces guardados num pote que, em seguida, farão alusão ao recipiente que guardará suas cinzas. As cinzas se misturaram à terra: a anciã cremada viverá a terra e na terra. 

Nota:

Author

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *